terça-feira, 16 de setembro de 2008

O Seqüestro da Subjetividade e o Desafio de Ser Pessoa - Parte VIII



(Pe. Fábio de Melo)



SUPERANDO AS IDEALIZAÇÕES

                             Mundo projetado é mundo idealizado. Ideal é tudo aquilo que compõe o objeto de nossa mais alta aspiração. O ideal pode ser muito benéfico na vida humana porque ele a movimenta constantemente, evitando assim sua estagnação, mas ao mesmo tempo pode se tornar altamente nocivo no momento em que impossibilita a vida real, fixando a pessoa em projetos de perfeições inatingíveis e idealizações impossíveis. O ideal, o projetado, só tem sentido para a vida humana se ele a conduz para o movimento que a aprimora. Em outras palavras: o sonho só vale a pena se estiver preso à realidade. Estando preso ao que é real, o sonho perde o perigo de ser infértil, mas passa a representar, para aquele que sonha, um motivo a mais para ir além.
                             Ainda na perspectiva dos malefícios que o mito do amor romântico provoca na vida das pessoas, continuamos a identificar a idealização do outro como forma de seqüestro. A literatura que socializa a mentalidade do mito do amor romântico, perfeito, assegura que a pessoa ideal existe, e que é preciso intensificar o processo de busca. Termos como “alma gêmea” e “cara metade” são muito comuns nessa literatura. Essa mentalidade é responsável pelas relações tão marcadas pela transitoriedade nos dias de hoje. Pessoas se elegem e se desprezam com muita facilidade. Juras de amor eterno hoje, e amanhã nenhuma satisfação pelo sumiço. É a vida e suas relações tão estranhas. É o trânsito intenso de pessoas pelas avenidas da alma. Procura incessante que nem sempre tem final feliz como nos contos de fadas. Trata-se de uma compreensão desencarnada do amor. Nesse mito há uma projeção constante de que o amor do outro resolverá todos os problemas de nossas vidas.
                             Uma coisa é certa: não sabemos quem somos, mas os outros nos imaginam. Essa frase expressa bem o processo de inadequação a que anteriormente nos referíamos. No ato de imaginar, o outro constrói a pessoa ideal, e essa pessoa ideal não existe, pois o próprio conceito já nos diz. Ideal só existe na idéia. É dessa perspectiva que nasce a compreensão dita anteriormente, mas que vale ser ressaltada. Não existe pessoa “ideal”, mas sim a pessoa “certa”. A pessoa certa condensa defeitos e qualidades, e a somatória de tudo resulta uma realidade pela qual o outro se apaixona. Acredito que haja uma forma interessante de abrir as portas desse cativeiro em que tantas vezes entramos, ou somos colocados. Não acredito que tenhamos que procurar as realidades ideais, mas sim as realidades certas. A profissão ideal não existe. O que existe é a profissão certa. Pronto. Com o conceito de “certo” podemos resolver o impasse. Tudo o que é “certo” refere-se a uma forma de regularidade. O relógio está certo? A pergunta quer saber se o relógio trabalhou com regularidade, isto é, se fez o que tinha que fazer. Se tiver trabalhado, estará marcando a hora certa. “Certo” também diz respeito àquilo que é verdadeiro. Pois bem, a verdade não é expressão de perfeição, mas é demonstração da realidade como ela é. A verdade é a coerência estabelecida entre o discurso e a realidade sobre a qual o discurso foi feito. Essa perspectiva é muito interessante. Muitos relacionamentos não são verdadeiros justamente por causa da ausência de coerência entre o discurso e a realidade. Aquilo que digo ser o outro não condiz com sua realidade. O outro não é absolutamente nada do que falei sobre ele. Ele é o fruto de uma projeção. Ele é ideal, e por isso não existe concretamente. Só existe na minha invenção.
                             Quando o encontro supera essas expectativas, as pessoas descobrem a graça de se olharem como são, a relação passa a ser construída a partir da verdade de cada um. Com isso, deixam de viver à procura da pessoa ideal e passam a descobrir a pessoa certa. A regularidade do conhecimento, da conquista e a constante vigilância para que a verdade prevaleça favorecem o surgimento de um amor maduro e sem idealizações. Essa idealização só poderá deixar de existir no momento em que as pessoas se tornarem capazes de encarar o amor como uma equação matemática. É a somatória de defeitos e qualidades. O resultado final é fator decisivo para saber se a relação é satisfatória ou não. Enquanto as pessoas estiverem imaginando príncipes montados em cavalos brancos e princesas indefesas, acorrentadas em suas torres, a idealização continuará privando-as do melhor da vida.
                             O grande problema é que a idealização provoca uma compreensão equivocada do amor. Na idealização, o amor é reduzido à paixão. A paixão é uma espécie de ante-sala do amor, mas ainda não é amor, porque não condensa os elementos necessários para o conhecimento do outro. Paixão é uma forma de visão turva. Vemos e, no fascínio do que vemos, imaginamos. A paixão é diferente do amor justamente por causa disso. A paixão sobrevive de idealizações, e o amor sobrevive de realidade. A paixão desinstala de uma forma infantil, tornando a pessoa vítima de suas fragilidades. O amor, ao contrário, amadurece e favorece a superação daquilo que a fragiliza. (...) Paixão só aprendeu a ficar por pouco tempo. O amor gosta é de permanecer a vida inteira. Esse caráter temporário da paixão é necessário para a construção do amor. O processo que nos leva a conhecer outras pessoas sempre começa em visões de superfície. A profundidade só é alcançada à medida que avançamos os territórios do outro. A paixão é o resultado da primeira vista, dos primeiros detalhes do território encontrado, da mesma forma como a antipatia natural. A pessoa apaixonada vive uma experiência estranha de projetar o outro como o maior acontecimento de sua vida. É sempre assim. Todo apaixonado acha que agora encontrou o amor de sua vida. Mas, com o passar do tempo, se esse conhecimento não o conduzir ao encontro real, concreto, de defeitos e virtudes pelos quais ele ainda continua apaixonado, a paixão dá espaço à desilusão e ao rompimento. O amor só pode acontecer nas pessoas que atravessaram a ante-sala da paixão. Somente depois de conhecidos os limites e virtudes é que o amor é real.
                             É por isso que as relações humanas são como pontes. Estamos sempre em travessia. Há sempre uma distância a ser percorrida, um passo a mais a ser dado no conhecimento do outro. Pontes são simbólicas. Elas estabelecem vínculos. Por elas cruzamos os obstáculos que dificultam nossa chegada ao outro lado. Quanto mais construímos pontes, muito maior será a possibilidade de conhecermos verdadeiramente aqueles que fazem parte do nosso mundo. É a atitude simbólica, que constrói e facilita os vínculos.

EGOÍSMO
Sinto falta de você.
Mas o que sinto falta é de tudo o que é seu e que me falta.
Sinto falta de minhas faltas que em você não faltam.
Sinto falta do que eu gostaria de ser e que você já é.
Estranho jeito de carecer, de parecer amor.
Hoje, neste ímpeto de honestidade que me faz dizer,
Eu descobri minhas carências inconfessáveis
Que insisto em manter veladas.
Acessei o baú de minhas razões inconscientes
E descobri um motivo para não continuar mentindo.
Hoje eu quero lhe confessar o meu não amor,
Mesmo que pareça ser.
Eu não tenho o direito de adentrar o seu território
Com o objetivo de lhe roubar a escritura.
Amor só vale a pena se for para ampliar o que já temos.
Você era melhor antes de mim, e só agora posso ver.
Nessa vida de fachadas tão atraentes e fascinantes;
Nestes tempos de retirados e retirantes,
Seqüestrados e seqüestradores,
A gente corre o risco
De não saber exatamente quem somos.
Mas o tempo de saber já chegou.
Não quero mais conviver com meu lado obscuro,
E, por isso, ouso direcionar meus braços
Na direção da dose de honestidade que hoje me cabe.
Hoje quero lhe confessar meu egoísmo.
Quem sabe assim eu possa
Ainda que por um instante amar você de verdade.
Perdoe-me se meu amor chegou tarde demais,
Se meu querer bem é inoportuno e em hora errada.
É que hoje eu quero lhe confessar meu desatino,
Meu segredo tão desconcertante:
Ao dizer que sinto falta de você
Eu sinto falta é de mim mesmo.


(Continua...)




*(Texto de autoria do Pe. Fábio de Melo. Retirado do livro "Quem me roubou de mim? O seqüestro da subjetividade e o desafio de ser pessoa").

Um comentário:

H K Merton disse...

Olá!

Arranjei um tempinho e vim dar uma verificada no desenrolar do post "O Seqüestro da Subjetividade e o Desafio de Ser Pessoa"...

O seu blog está muito legal!

"O ideal pode ser muito benéfico na vida humana porque ele a movimenta constantemente, evitando assim sua estagnação, mas ao mesmo tempo pode se tornar altamente nocivo no momento em que impossibilita a vida real, fixando a pessoa em projetos de perfeições inatingíveis e idealizações impossíveis. O ideal, o projetado, só tem sentido para a vida humana se ele a conduz para o movimento que a aprimora. Em outras palavras: o sonho só vale a pena se estiver preso à realidade. Estando preso ao que é real, o sonho perde o perigo de ser infértil, mas passa a representar, para aquele que sonha, um motivo a mais para ir além."

Isso pode ser aplicado em todos os setores da vida! Esse livro é incrível, cara!

Aproveito para agradecer por tudo, amigo e irmão querido.