sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O Seqüestro da Subjetividade e o Desafio de Ser Pessoa - Parte VI



(Pe. Fábio de Melo)



LIBERDADE: DO SIGNIFICADO À REALIDADE.

                             Já somos livres, mas ainda não. Parece um jogo de palavras, mas não é. Trata-se de uma perspectiva muito interessante que pode ser explicitada de maneira simples a partir de uma frase: “nem tudo o que temos já é nosso, porque carece ser conhecido e conquistado”. É simples. Já parou para pensar nos inúmeros talentos e habilidades que você possui, mas que ainda não desenvolveu por falta de cultivo? É disso que estamos falando. Há talentos que só poderemos saber que os possuímos se fizermos alguma coisa para despertá-los. É processual, isto é, carece de tempo, disciplina, projeto.
                             Liberdade é semelhante a um talento. É um elemento constitutivo humano desencadeado à medida que o ser humano se esmera no processo de torná-lo real. A conquista da liberdade se dá no mesmo processo do “tornar-se pessoa”. Ao “tomar posse de si mesma”, a pessoa torna-se livre para ser para o outro. Um movimento gera o outro, de maneira que serei mais pessoa à medida que for mais livre, e mais livre à medida que for mais pessoa.
                             Toda vez que sofremos uma violência, de alguma forma nossa liberdade é ameaçada, isto porque um ato de violência tem o poder de repercutir diretamente na estrutura do ser. A violência, declarada ou velada, aprisiona nossa humanidade e a priva de viver o desafio de alcançar a si mesma. Por isso, o desafio humano da liberdade consiste em tomar posse do que é, mas que ainda não foi totalmente alcançado. Para entendermos melhor essa questão, vamos nos remeter ao contexto da filosofia de Aristóteles.
                             Há duas categorias filosóficas explicitadas na reflexão de Aristóteles, ambas de fundamental importância para uma compreensão mais acertada do que pretendemos analisar. No afã de explicar a realidade, Aristóteles estabelece as categorias de “ato e potência”. Para ele, o movimento da vida parte sempre da potência ao ato, da privação à posse. O interessante é que as categorias aristotélicas sugerem uma interação constante. O ato é também potência porque está na circularidade do movimento. É “ato” tudo aquilo que já é. É “potência” tudo aquilo que o ato ainda pode ser. Difícil? Creio que não. É possível simplificar. Uma árvore é um ato em potência de se tornar inúmeras cadeiras. Afinal, uma árvore é matéria-prima que poderá ser transformada naquilo que o marceneiro determinar. A árvore é ato, mas é cadeira em potência, da mesma forma como pode ser também uma mesa. As categorias de ato e potência conferem uma dinâmica para a vida. Além delas, Aristóteles estabelece duas outras que serão fundamentais para nossa reflexão. São as categorias de “essência e acidente”.
                             Essência é o fundamento que gera a realidade, isto é, que a faz ser o que é. A essência dá identidade ao ser. Refere-se ao âmago daquilo que é. Já o acidente é apenas um elemento que se refere à essência, mas que não é determinante para o que é essencial. Exemplo que ajuda a entender: uma flor (essência) pode ser grande ou pequena (acidente). O tamanho da flor não modifica a sua condição essencial. É uma flor, mesmo pequena. Trazemos aqui as categorias aristotélicas para que elas nos ajudem a entender o processo da liberdade em nós.
                             Para a Antropologia Teológica Cristã, a liberdade é considerada a partir do dom que se concretiza aos poucos, por meio do esforço humano. Apesar de livres, ainda não somos totalmente o que somos, isto é, somos livres, mas ainda experimentamos prisões em nossas vidas. É por isso que podemos nos compreender como realidades processuais, isto é, estamos em constante processo de feitura. O ser humano se constrói aos poucos. Tudo já está nele, mas é preciso conquistar-se, alcançar a essência; caso contrário, corre-se o risco de morrer sem ter chegado ao que essencialmente se é. O fundamental já nos foi entregue, mas o que agora temos diante de nossos olhos é a árdua tarefa de levantar as paredes da construção que podemos ser. Cada ser humano, ao seu modo e tempo, vive esta aventura de desvendar-se. O autoconhecimento é condição irrenunciável para uma existência feliz e realizadora. É por meio dele que a pessoa alcançará o instrumental de sua realização, visto que ele é desvelamento de possibilidades e limites. Nenhuma realização é possível quando se desconsideram os elementos constitutivos da sua condição. Ser humano é poder, mas também é carecer. Se por um lado temos as possibilidades, por outro temos as carências.
                             A liberdade é elemento constitutivo do humano; é estatuto, condição, mas precisa ser considerada como dom que se desdobra na tarefa. Parece estranho, mas é simples. A liberdade que há em nós precisa ser libertada. Assim como a semente (uma árvore em potência) condensa todas as possibilidades da árvore que um dia virá (uma semente em ato), também o ser humano condensa em si inúmeras possibilidades que dependerão de atos que as desencadearão. A semente já é a árvore, mas em potencial. Terá que passar pelo processo de superar todas as adversidades de seu espaço, para finalmente chegar a ser o que já era em potencial. Será necessário crescer, lutar para alcançar tudo o que já é, mas em potencial.



Vir a Ser

Eu procuro por mim.
Eu procuro por tudo o que é meu
E que em mim se esconde.
Eu procuro por um saber
Que ainda não sei,
Mas que de alguma forma já sabe em mim.
Eu sou assim...
Processo constante de vir a ser.
O que sou e ainda serei
São verbos que se conjugam
Sob áurea de um mistério fascinante.
Eu me recebo de Deus e a Ele me devolvo.
Movimento que não termina
Porque terminar é o mesmo que deixar de ser.
Eu sou o que sou na medida em que
Me permito ser.
E quando não sou é porque o ser eu não
Soube escolher.


(Continua...)






*(Texto de autoria do Pe. Fábio de Melo. Retirado do livro "Quem me roubou de mim? O seqüestro da subjetividade e o desafio de ser pessoa").

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