sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O Seqüestro da Subjetividade e o Desafio de Ser Pessoa - Parte V


(Pe. Fábio de Melo)



VIOLÊNCIAS DECLARADAS E VIOLÊNCIAS VELADAS.

                             Ato violento é tudo aquilo que atenta contra a pessoa e lhe causa danos. O contexto da violência é bastante amplo. Ela pode se manifestar de formas muito diversas, de maneira que podemos falar de violências declaradas e violências veladas. Essas modalidades de violência, de alguma forma, são desdobramentos dos temas que estamos abordando: o seqüestro do corpo e o seqüestro da subjetividade. Nesse descontrole, que tem sempre como foco o desejo de acertar – afinal, ninguém quer errar na educação dos filhos -, encontramos uma violência velada sendo praticada contra crianças e adolescentes.
                             Quando um progenitor permite que o filho faça o que bem entender de sua vida, uma violência terrível é cometida. Se por um lado a proibição arbitrária se configura como violência que impede o crescimento da pessoa, por outro, a permissão deliberada e sem critérios torna-se fonte da mesma privação. Cada vez que uma criança ou um adolescente é exposto ao direito de decidir o que ele ainda não está preparado para decidir, um ato de violência é cometido. É também violência permitir que assuntos que não são próprios do universo infantil sejam tratados na frente de crianças. É violência cada vez que uma criança é vestida como se fosse um adulto, e dela é solicitado um comportamento que não condiz com sua idade. Expor uma criança à necessidade de ser adulto ou exigir dela a compreensão de um universo diferente do seu é o mesmo que expô-la à orfandade. O resultado dessa violência é profundamente comprometedor na vida daquele que a experimenta. Crianças sem limites podem se tornar adultos imaturos.
                             Violências veladas e violências declaradas. Violentados legitimando o poder daqueles que os violentam. Ambos privados da relação que tem o poder de promover a dignidade e o aperfeiçoamento do humano. Duas histórias para ajudar a entender:


O grande agressor.

                             Ela me olhou cheia de receios. Os olhos estavam muito inchados. A pele escurecida por hematomas era a denúncia que não carecia de palavras. A violência havia passado por ali. A boca com um pequeno corte no canto esquerdo dificultava sua fala. Voz mansa, embargada por rompantes de choro doído. Choro de quem não sabe pedir ajuda. Ela era uma mulher bem-sucedida, emancipada. Bancária, mãe de três filhos que já cursavam faculdade na capital, dividia o lar com seu marido, um empresário que não se especializou na arte de amar. Ele entrou na sua vida quando ela ainda era uma adolescente. O casamento aconteceu dois anos depois de iniciado o namoro. Ela não teve muita escolha. Vida no interior é assim. O casamento parece ser obrigação a ser cumprida, ainda que não exista amor.
                             Os atos de violência começaram alguns meses depois de casados. Principalmente os gritos que não existiram durante o namoro, depois pequenos empurrões, até chegar ao absurdo de surras que a deixavam marcada por todo o corpo. No dia em que me pediu ajuda, ela já acumulava cinqüenta e dois anos, dos quais trinta e quatro vividos ao lado do seu agressor. Reconheceu que não sabia mais o que fazer, mas já sabia que tinha que fazer alguma coisa. As agressões não estavam apenas na sua pele. Estavam em toda a sua alma. Cicatrizes no corpo nos recordam o sofrimento do corpo, mas há outras cicatrizes mais profundas que não conseguimos enxergar com facilidade. Aquela mulher chorava por razões novas e antigas. A primeira surra, já distante no tempo, quase trinta e quatro anos, ainda doía em algum lugar da alma. Perguntei a razão de sofrer calada até aquele dia, e ela me confessou que tinha medo de que, ao contar para alguém, pudesse perdê-lo. Os filhos não sabiam das agressões. Tudo foi muito velado ao longo da vida, e aquele último episódio veio a público porque um vizinho escutou os objetos sendo quebrados durante a agressão e entrou na casa.
                             Ela não conseguia olhar nos meus olhos enquanto me dizia tudo isso. Preferia fixar a atenção no movimento das mãos, que seguravam um pequeno pedaço de barbante. Enquanto contava os fatos, aquele pequeno barbante era enrolado e desenrolado nos dedos, como se aquele movimento representasse o movimento da sua vida. Eu ouvia sem saber o que dizer. Estava indignado. Indignação costuma cortar a fluência das palavras. Ousei perguntar se ela queria separar-se dele, e prontamente ela me disse que, se isso acontecesse, ela não saberia o que fazer da própria vida. E o barbante continuou sendo enrolado nos dedos... Não pude fazer muita coisa. Ela não quis denunciá-lo à polícia. Embora eu soubesse que esta seria uma atitude correta, tive que respeitá-la. Perguntei o que ela queria de mim. Olhando-me com serenidade, disse-me que só queria desabafar; apesar de eu ter idade para ser seu filho, ela sentira um desejo de que eu a tratasse como filha. E eu o fiz. Eu a abracei e lhe garanti que a apoiaria seja qual fosse sua decisão.
Agradeceu-me, e fui embora.
                             Aquela senhora não sabia viver longe de seu agressor. Amor de domínio, amor estragado. O tempo prolongado no cativeiro, quase uma vida inteira, retirou-lhe a coragem de falar dela mesma. Aprender a engolir o choro, a não reclamar dos maus tratos. Subjugou seu coração ao domínio de um homem frio e insensível que se proclamou proprietário de sua história. Ela permitiu. A surra que deformara seu rosto começou leve. Antes de ser tapa, foi grito. Permitido o grito, vieram os empurrões. Dos empurrões aos golpes violentos foi um salto pequeno. Tudo começa pequeno nesta vida; e só cresce se o permitirmos. Aquela mulher autorizou o invasor. Abriu o portão para que ele viesse pisar o seu jardim. E, depois de tanto tempo, descobriu que não possuía voz nem coragem para proclamar a ordem de despejo. Pequenas permissões abrem espaços para grandes invasões. Grandes tragédias começam com pequenos descuidos. Desastres terríveis são iniciados com displicências miúdas. São as regras da vida. Se quisermos o fruto, é preciso que haja empenho no cultivo do broto. O agressor não foi repreendido. Ele cresceu e alcançou força porque a própria vítima o nutriu. Os inimigos só podem sobreviver à medida que injetamos sangue em suas veias.
                             A vida nos jardins ensina-nos uma sabedoria milenar. Plantas precisam de podas para que não ultrapassem os limites estabelecidos. Não houve poda, e por isso a árvore avançou o território que não poderia ter avançado. Árvores crescem sem disciplina. A tesoura de poda é que dará o rumo que a árvore poderá seguir.


O pequeno agressor.

                             Uma outra história, uma outra mulher. Nessa mulher não existiam marcas de violência física. O que havia era uma expressão de cansaço num rosto que parecia ter envelhecido antes do tempo. O rosto é o retrato da história vivida. Nela o sofrimento não nasceu de agressões de um marido que não soube amar, mas de um filho que, aos nove anos de idade, assumiu o comando da casa. Um filho sem limites, agressivo e totalmente arredio a qualquer regra. Contou-me que o casamento havia terminado poucos meses antes. O marido, incapacitado de transformar a relação que ela estabelecera com o filho, resolveu ir embora definitivamente. Deixou de ser marido, mas também deixou de ser pai. Ela disse que não fez muito esforço para que o marido permanecesse. Alimentava a ilusão de que, com sua ausência, o filho pudesse se tornar mais dócil, mas isso não aconteceu. Contou-me também que o marido não teve muita influência na educação do menino. O trabalho lhe retirava rotineiramente da vida familiar, e, nas poucas vezes que tentava alguma forma de repreensão, a mãe o desautorizava severamente.
                             Envergonhada, confessou-me que, por duas vezes, o menino a agrediu fisicamente. Na primeira ocasião, a reação agressiva foi pelo simples fato de ela ter passado pela sala sem perceber ter levado com o pé o cabo do vídeo game. Arremessou-lhe uma tesoura e a machucou na perna. A segunda agressão resultou de uma pergunta corriqueira, coisa de quem ama: a mãe apenas perguntara se o filho já havia tomado o café. A envelhecida mulher salientou um detalhe interessante. Confessou-me que mais doído que receber uma agressão física do próprio filho foi ouvi-lo gritar o desejo de matá-la. Depois disso, ela percebeu que precisava de ajuda. Recorreu a uma psicóloga, mas o menino se recusou a entrar no consultório. A psicóloga a alertara para a necessidade de retomar a autoridade sobre a criança, mas ela não soube nem tentar.
                             A vida não estava fácil. Estava sendo refém do seu amor. Reconheceu que errou por amar de um jeito errado. Não, ela não queria errar. Queria apenas livrar o seu menino da infância triste que ela vivera ao lado de um pai agressor. No ímpeto de fazer-lhe bem, acabou por alimentar no filho uma personalidade sem controle e monstruosa. Admitiu temê-lo. Reconheceu que escolhe as palavras para falar com ele, porque teme sua reação. A relação está invertida. O filho assumiu o controle da mãe. Ele tem acesso ao seu medo, sabe que é soberano porque reconhece a fragilidade da mulher que não quer errar. Não querer errar é uma fragilidade terrível. O medo do erro nos neutraliza as forças e não nos permite ir além de nosso pequeno mundo.
                             O pequeno homem de apenas nove anos de idade é o seu agressor. No relato daquela mulher, pude identificar o sofrimento que nasce da boa intenção. Mas boas intenções não salvam o mundo. É preciso um algo a mais. É preciso a constante vigilância do discernimento, que nos assegura se nossas intenções estão de fato alcançando o melhor resultado. Amores cegos podem nos conduzir ao caos. A dura experiência de uma mulher que aos trinta e sete anos de idade é refém de seu filho de nove é a prova concreta dessa afirmação. Os dois estavam marcados por limitações fecundas: o menino, privado de ser educado de maneira correta, e a mãe, privada de sua autoridade e de sua própria liberdade. O amor não pode ser cego (*no sentido de acrítico). Caso contrário, ele nos coloca no cativeiro, gera privações. Na tentativa de livrar seu filho do sofrimento que um dia havia experimentado, ela o privou da disciplina que gera caráter. Filho que não é criado a partir de limites estabelecidos é filho sem pai e sem mãe. O limite é a expressão concreta do amor dos pais. Eles delimitam o território para que o filho cresça sem ser tão vitimado pelos males que são próprios dos dias de hoje. Ouvi o desabafo daquela mulher e confesso que não soube muito o que dizer. Reverter um quadro como esse requer muita sabedoria. Sugeri ajuda terapêutica para os dois.
                             A necessidade de ambos diz respeito à posse de suas identidades. Eles não sabem o que são na relação que estabeleceram. A mãe precisa saber que é mãe, e o filho precisa saber que é filho. Como vimos anteriormente, a identidade assumida nos posiciona a partir do que podemos, mas também do que não podemos. Que mudem as mentalidades, porém uma coisa não poderá ser mudada: pais e mães não têm o direito de abdicar da responsabilidade de educar os seus filhos, e educação é o processo amoroso de estabelecer limites. Se isso não está acontecendo, então temos alguma subjetividade seqüestrada, isto é, uma pessoa ausente de si mesma, distante de seu papel.


                             Duas histórias de agressões originadas de fontes tão distintas. Um marido agressivo e um filho sem limites, mas ao mesmo tempo comportamentos tão semelhantes. Vítimas que construíram seus agressores, aos poucos, bem aos poucos. Isso nos leva a entender que a seriedade da violência não depende do tamanho de quem agride. Uma criança tem o mesmo poder que um adulto, desde que a ela seja dada autoridade.
                             O que legitima a violência é a autoridade que entregamos ao agressor. O desafio constante das relações humanas é preservar a liberdade das pessoas. Quando a liberdade é negada, a relação passa a representar um serio risco, porque atenta diretamente contra a fonte geradora da pessoa. Não há pessoa sem a experiência da liberdade.


(Continua...)





*(Texto de autoria do Pe. Fábio de Melo. Retirado do livro "Quem me roubou de mim? O seqüestro da subjetividade e o desafio de ser pessoa").

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