domingo, 24 de agosto de 2008

O Seqüestro da Subjetividade e o Desafio de Ser Pessoa - Parte IV



(Pe. Fábio de Melo)


RELAÇÕES QUE SEQUËSTRAM

                             Como vimos, o processo de ser pessoa está diretamente ligado à problemática do seqüestro da subjetividade. A razão é simples. Se uma pessoa está privada de ser ela mesma porque alguém a trancafiou em uma relação de seqüestro, é bem provável que ela deixe de dispor de si mesma e conseqüentemente deixe de dispor-se aos outros. Os seqüestros da subjetividade deixam marcas nas duas perspectivas: indispõem a pessoa para si mesma e também para o outro. Por isso, temos duas realidades dignas de análise que podem ser assim simplificadas: ou vivemos só para nós ou vivemos só para os outros. Nos dois casos há um grande erro sendo cometido.
                             Viver a dinâmica que o conceito de pessoa nos sugere é trabalhoso. Se nos fecharmos na disposição do que somos, e se não dermos o passo na direção do outro, cairemos numa espécie de solipsismo (*vida na solidão), ou então numa negação da subjetividade concreta. O eu, na solidão, sem interação, não poderá crescer. O outro tem o poder de indicar nossas possibilidades e limites. O que dispõe de si mesmo carece de entrar na disponibilidade das relações. Elas o aperfeiçoarão. Por outro lado, a conjugação deste “nós”, sem que antes tenha ocorrido a disposição do “eu”, caracteriza-se como forma de comunitarismo infértil. A qualidade da vida social está diretamente relacionada à qualidade das pessoas e suas articulações particulares. Antes da disponibilidade para o outro, é indispensável a disposição de si, porque só assim haverá liberdade e respeito ao que o outro é. Só quem é dono de si pode oferecer-se aos outros sem tantos riscos de se perder no outro.
                             O desafio consiste em equilibrar os dois pilares. Não há pessoa sem solidão do “eu”, tampouco há pessoa sem a interação plural. As duas realidades se complementam. A qualidade humana das relações depende das dosagens que fazemos desses dois pilares. As medidas do meu ser precisam ser balanceadas com as medidas daqueles que são e estão ao meu lado. Um ser humano bem equilibrado e socialmente saudável consegue identificar essas medidas, e empenha-se para que uma realidade não estrangule a outra. Quando essa conduta não é assumida, o que temos é uma relação que tem o poder de provocar o seqüestro da subjetividade.
                             Relações que seqüestram são aquelas em que um “eu” tenta sufocar outro “tu”, reduzindo-o a mero instrumento de sua afirmação. O outro não é considerado em sua alteridade, mas é visto como extensão das necessidades de quem o enxerga. A esse processo, Martin Buber chamou de relações objetais. O outro é visto como um “isso” e não como um “tu”. Não há epifania da sacralidade do outro. Feito um objeto, o outro perde o direito de ser ele mesmo, desprende-se de sua identidade, de sua condição real, e passa a ser “coisa” na mão de quem o desconsidera. “Alguém”, quando é colocado na condição de “algo”, vive a negação de sua dignidade; desumaniza-se, porque deixa de ser considerado como pessoa, e passa a viver a condição de objeto. Deixa de ser “organismo” para se transformar em “mecanismo". Nos seqüestros do corpo, esse processo é evidente. O seqüestrado não tem valor como pessoa. É uma coisa a ser negociada. É um bem útil que será avaliado e possivelmente trocado. É um mero mecanismo para se chegar a algum objetivo. Um mecanismo que satisfará a necessidade que o seqüestrador tem para alcançar um resultado.
                             No seqüestro da subjetividade, o mesmo acontece. O seqüestrador passa a ser o proprietário. Ele definirá o ritmo da relação, e o seqüestrado, vivendo a condição de vítima, será incapaz de reagir de forma contrária aos desejos de seu proprietário. O rapaz e sua dependência química às drogas, a menina e seu namorado mandão são exemplos dessa incapacidade de romper com o seqüestrador. O seqüestrado permite essa relação. O medo de ser deixado, abandonado, o encoraja a sofrer todos esses malefícios. Nesse caso, vale aquela máxima popular: “ruim com ele, pior sem ele!”. É lamentável, mas esse discurso tão cheio de conformismo é muito comum entre nós. Ele evidencia o quanto as pessoas estão indispostas para um rompimento com as relações de seqüestro, justamente porque a quebra do cativeiro gerará um sofrimento nos seqüestrados. No caso dos dependentes químicos, o sofrimento da abstinência e, nos dependentes afetivos, o sofrimento de romper os vínculos.
                             Por isso a dificuldade em tomar iniciativas. O cativeiro, por pior que seja, acabou por se tornar um lugar seguro. O seqüestrado está esquecido da vida livre; já não sabe como é ser gente fora das prisões. Esqueceu que é rei e vive como se fosse escravo. O tempo no cativeiro o fez acostumar-se com a comida qualquer, com o amor qualquer, com o cuidado qualquer. Quem sobrevive de qualquer maneira facilmente também se considera qualquer pessoa; inclui-se no contexto da multidão como se fosse apenas mais um. É a cultura do “qualquer jeito” que tem anestesiado tanto as pessoas para as transformações necessárias. A mediocridade existencial tem sido a opção mais fácil. Esse é o resultado psicológico dessa modalidade de seqüestro. O que temos é uma vítima acostumada com a violência que sofre. A vítima torna-se a principal responsável pela condição mantida. É a violência assumindo o seu caráter destruidor e definitivo. Violência sutil, velada, que não tem as mesmas características do ato violento declarado. Façamos esta distinção.

(Continua...)




*(Texto de autoria do Pe. Fábio de Melo. Retirado do livro "Quem me roubou de mim? O seqüestro da subjetividade e o desafio de ser pessoa").

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