quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O Seqüestro da Subjetividade e o Desafio de Ser Pessoa - Parte VII


(Pe. Fábio de Melo)



EXERCITANDO LIBERDADES: LIBERDADE FUNDAMENTAL E LIBERDADE ELETIVA

                             A liberdade está para o ser humano assim como a semente está para a árvore. É potência. É vocação, mas é também luta e empenho. Quando falamos dessa liberdade que já está no ser humano, mas que precisa ser conquistada, estamos nos referindo a uma liberdade fundamental, que também pode ser chamada faculdade entitativa (ente, referente ao ser), isto é, uma condição irrenunciável, um estatuto que nos identifica e nos diferencia. Essa liberdade fundamental é elemento constitutivo do ser humano. Está na semente, na essência que se desenvolverá ao longo da vida.
                             Por outro lado, temos a liberdade circunstancial, categorial. Essa experiência de liberdade se dá nas circunstâncias da existência. A vida humana é exercício constante do que chamamos de liberdade eletiva, isto é, liberdade que nos ajuda a fazer escolhas. É a resposta que damos a nós mesmos e aos outros, diante das inúmeras interpelações e alternativas. Essa liberdade é relativa, porque sofre variações. O inegável é que a moldura da vida é composta dessas pequenas escolhas.
                             Liberdade eletiva é liberdade de toda hora. São as respostas para as perguntas mais simples. Aonde vou? Que roupa usarei? O que faremos para o almoço? Coisas simples que passam pela nossa eleição de toda hora. Liberdade entitativa é mais profunda. São as respostas para as perguntas mais fundamentais. O que tenho feito da minha vida? Por que tenho medo? Quem me roubou de mim? Questões mais elaboradas e que deveriam passar o tempo todo pela nossa reflexão.
                             O interessante é perceber que essas duas formas de liberdade estão naturalmente entrelaçadas. A liberdade mais profunda é construída o tempo todo no exercício das pequenas escolhas. Aqui está uma chave que vale a pena levarmos conosco. Ela nos abrirá muitas portas. Quando fico atento às escolhas mais simples, aquelas que a todo momento eu realizo na minha história, de alguma forma já posso saber se estou aprisionado ou se estou libertando a minha liberdade fundamental. Se nas circunstâncias da existência faço escolhas que confirmam a minha liberdade fundamental, estou sendo livre de fato. Estou regando bem a minha semente, para que ela se transforme na árvore que traz dentro de si. Mas se nas circunstâncias da minha vida faço escolhas que me aprisionam, estou deixando de fazer aflorar o meu fundamento. A liberdade fundamental depende das liberdades categoriais.
                             O exemplo é simples e pode nos fazer entender. Temos uma escultura preciosa , rica de detalhes, mas que está muito empoeirada. Cada pedaço dessa escultura submetido a um processo de limpeza revelará a beleza que a poeira insiste em esconder. Se, em vez de limpar, optarmos por expor a escultura a novas nuvens de poeira, os detalhes da beleza ficarão ainda mais ocultos. A liberdade fundamental é uma escultura belíssima que todos nós trazemos cravada no mais profundo de nossa condição humana. A liberdade circunstancial, categorial, é a oportunidade que temos de trazê-la à tona, ou não.
                             A experiência humana nos ensina que o amor condensa o poder de fazer o outro ser livre. É disso que estamos falando. Amar concretamente alguém consiste em viver a responsabilidade, a proeza de ter que retirar os excessos que ocultam suas belezas. Amar é assumir a responsabilidade de viabilizar o florescimento da liberdade fundamental que há no outro. Todo gesto humano, por menor que seja, pode se tornar significativo no processo de conquista e alcance dessa liberdade fundamental. Somos históricos, isto é, vivemos situados, contextualizados, e essa experiência histórica é determinante para nossa busca. Cada um, ao seu modo e intensidade, está intervindo no processo dos que estão mais próximos. Creio que seja sempre necessária uma análise minuciosa de nossa influência na vida dos que estão mais próximos de nós. Nosso jeito de viver pode promover, ou não, a liberdade fundamental daqueles que fazem parte de nosso horizonte de sentido. Se nós dizemos que amamos, então precisamos ser instrumentos de libertação na vida dos que dizemos amar. O que dá testemunho de nosso amor não é a declaração que a linguagem das palavras nos permite, mas é a linguagem dos gestos que concretizamos diariamente.
                             Só o amor faz ser livre, porque ele quebra os cativeiros que nos aprisionam. Ele tem o dom de devolver a liberdade, e por isso não há experiência de amor fora da liberdade. Ninguém pode ser amado e ao mesmo tempo ser mantido cruelmente na prisão. Não podemos acreditar no amor de quem nos aprisiona e nos mantém em cativeiro. O amor verdadeiro é o amor que faz ser livre, que faz ir além, porque não ama para reter, mas para promover. Amor e liberdade são duas vigas de sustentação para qualquer relação que pretenda ser respeitosa.
                             Se Deus nos fez livres, o amor de quem nos encontrar pela vida não pode ser contraditório ao amor que nos originou. O outro que acabou de chegar não tem o direito de se tornar obstáculo para “Aquele” que nos sustenta em nossa condição primeira. Se quiser nos amar, se quiser fazer parte da nossa vida, terá que ter diante dos olhos o que somos, o que ainda podemos ser, e não o que ele gostaria que fôssemos. O amor só acontece quando deixamos de imaginar. Só a realidade autentica o amor, demonstra sua verdade. Estamos em processo de feitura, e Deus nos devolve a nós mesmos o tempo todo. Ele nos devolve pelas mãos históricas de quem nos encontra, de quem nos ama. É o amor humano de Deus, manifestado em minha vida pela força de pessoas concretas, cheias de voz e de gestos. Essas são as pessoas que nos ajudam a conquistar o que não sabíamos possuir. Elas nos mostram o avesso de nossa realidade, porque o amor é uma espécie de lente que amplia a nossa autopercepção. O olhar de quem nos ama é um olhar que nos devolve, abre portas.
                             Por outro lado, se não somos amados, corremos o risco de sermos roubados de nós. Corremos o risco de nos tornar vítimas nas mãos dos outros e de sermos fechados nas estruturas minúsculas de um cativeiro. Se já afirmamos que, pelas mãos humanas, Deus toca em nossas vidas, amando-nos no amor humano que nos promove, por outro lado, também podemos dizer que as estruturas diabólicas nos alcançam cada vez que o amor doentio dos outros modifica nossas escolhas e afeta nossa liberdade fundamental. Uma coisa é certa: quanto maior é o bem que nos provocam, maior é o desejo que temos de ficar por perto. O desejo sobrevive assim. O outro nos apresenta um jeito novo de interpretar o que somos, e por essa nova visão nos apaixonamos. O que nos encanta no outro é o que ele nos conseguiu fazer enxergar em nós mesmos. Egoísmo? Não. Apenas o primeiro pilar do conceito de pessoa alcançando uma profundidade ainda maior dentro de nós.


(Continua...)





*(Texto de autoria do Pe. Fábio de Melo. Retirado do livro "Quem me roubou de mim? O seqüestro da subjetividade e o desafio de ser pessoa").

Um comentário:

Paulo Costa disse...

Olá Mizi!

Claro que me lembro de si.
Obrigado pelos elogios ao meu blogue e por me indicar o seu novo endereço. Tentarei passar por aqui com regularidade.
Já conheço alguns escritos do Pe. Fábio Melo, mas muito pouco. Cheguei a publicar um texto dele no meu blogue.
Em breve, passarei aqui com mais tempo para ler com atenção e cuidado os textos que você publicou.

Um grande abraço fraterno!