domingo, 13 de setembro de 2009

A gota e o Oceano


Prefácio do livro “Zen e as Aves de Rapina” de Thomas Merton.
(Escrito por Murillo Nunes de Azevedo)


“O gosto do Zen despertado no Ocidente é, em parte, a sadia reação de pessoas exasperadas com a herança de quatro séculos de cartesianismo: a deificação de conceitos, a idolatria pela consciência refletiva, a fuga da realidade para ater-se ao verbalismo, à matemática e à racionalização. Descartes fez do espelho em que o eu se encontra um fetiche. O Zen o despeça pondo-o em frangalhos.” (Thomas Merton).




                             Neste instante milhões de seres nascem, milhões morrem. Caem as folhas. As ondas chocam contra as rochas. Bilhões de acontecimentos simultâneos. Efervescência. Mas as limitações dos veículos através dos quais a consciência se expressa dá aos homens a impressão linear dos acontecimentos. Cada um deles é único, instantâneo, e deixa da sua breve passagem um traço como o registro de uma partícula atômica numa câmara de gás. Essa trajetória é o resultado de uma série de encontros. Reflete a marca de uma presença. Tudo está interpenetrado. Reflete a marca de uma presença. Tudo como gotas de um mesmo Oceano.



                             No poema hindu Bhagavad Gitã, seu personagem central, Arjuna, suplica a Krishna (emanação corporificada sob forma humana do Absoluto) que lhe revele a verdadeira face da Realidade. E então viu:

“Assim como as chamas destruidoras do Tempo,
Contemplo teus dentes poderosos, eretos,
Alinhados nas mandíbulas escancaradas.
Ninguém encontrará abrigo ou misericórdia,
Ó Senhor Supremo de todos os mundos!
Todos, amigosm inimigos, desconhecidos, nós mesmos,
A multidão que passa como um rio,
Vão sendo tragadas por tua imensa boca.”


                             A visão de Arjuna revela a Realidade tal como é. Nua, sem proteções psicológicas e embelezamentos. É a forma Zen pondo em frangalhos o espelho onde o “eu” se reflete.
                             Tailândia. Bangkok. Dia 10 de dezembro. 1968. 14 horas. Calor. Num quarto um homem liga um ventilador. Choque? Colapso? Um corpo cai junto com o ventilador. Lá fora, o rio, os barcos continuam a passar rumo ao mercado. Nas lojas, peixes coloridos dão voltas dentro dos aquários aguardando os fregueses. Galos de briga se engalfinham num ringue. A multidão de apostadores grita. Ventilador trabalhando, cortando a carne do homem morto caído no chão. Sangue jorrando.
No final da vida de Thomas Merton, os acontecimentos chocam-se como ondas conflitantes que se fragmentam em milhares de gotículas. Nos mosteiros budistas monges recitam sutras. Outros meditam. Cochilam. Alguém bate à porta do quarto. Ventilador trabalhando. Batidas. Ventilador girando. Porta arrombada. Ventilador desligado. Polícia. Médicos. Padres chegando. Corpo lavado. Corpo vestido. Hábito de monge. Recitação lenta do rosário. O saltério. Murmúrio das preces. As cigarras cantando na tarde que cai. Um caixão envernizado aguarda no aeroporto. Acontecimentos. Caixões com soldados norte-americanos vindos do Vietnã. Misturado a eles um monge ruma ao Leste. O Oceano Pacífico lá embaixo reflete a lua. Os pilotos tomam café e contemplam os mostradores iluminados no painel de instrumentos. Bocejos. Thomas Merton voltando para casa. Acontecimentos. Simples acontecimentos. Oceano. Um novo dia começa a surgir. As ondas voltando para trás. Há 2600 anos um homem sentado sob uma árvore atinge a plena iluminação: o Nirvana. Uma gota transforma-se em Oceano. O Buda, o iluminado, o plenamente desperto, o Príncipe Sidartha Gautama, que tinha abandonado todos os reinos terrenos “via” a configuração do Eterno. Paz suprema. Sente as limitações da palavra para transmitir essa vivência de planos de consciência que o homem comum nem sonha. Tem então a visão simultânea dos acontecimentos. Diante de si a existência é como um lago onde se encontram bilhões de sementes de lótus, que na grande maioria estão no fundo, mergulhadas na lama, apodrecendo silenciosamente para que a vida possa nascer. Outras, começam a germinar e procuram vencer a água escura em busca de algo que não vêem, mas que apesar disso as atraem. Poucas se aproximam da superfície das águas. Pouquíssimas romperam a linha divisória e em pleno ar, expostas ao sol, começam a entreabrir as pétalas. Cada uma delas é um ser num estágio diferente de desenvolvimento. Recebendo da luz do sol uma mensagem diferente, apropriada à sua natureza.
                             As ondas vão indo para frente. Há aproximadamente 2000 anos, um homem morre na cruz. Falava dos pobres de espírito, dos puros de coração. Dos simples, dos mansos. Dos autênticos que verão em si o Senhor. O reino de Deus tem muitas mansões. “Aprendei a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam e as folhas brotam sabeis que está próximo o verão”. As suas palavras foram registradas na letra fria dos textos. Foram repetidas por muitos. Mas poucos as “compreendem”. Pois compreender é viver em si a experiência. E aquele que vive no verbalismo está escravo dele. É preciso sentir as folhas brotando para termos a consciência de “verão” que se aproxima.
                             Em todas as religiões encontra-se, mais ou menos mergulhado, um apelo (que chamaríamos Zen) para o abandono do superficial e a busca do essencial.
                             Thomas Merton sentia-se atraído pelo Budismo e pelas religiões asiáticas, pois sentia a necessidade de um encontro com as raízes que estão além do mero verbalismo. Essas religiões não se julgam exclusivas, nem detentoras da Verdade. São acessíveis e tolerantes em seus conceitos demonstrando uma abertura de consciência que se encontra no Cristianismo primitivo, mas que por força de injunções políticas e sociais foi sendo amortecida na interpretação ao pé da letra dos textos bíblicos. Nada é pior do que a estrutura burocrática, temporal, visando resultados concretos para asfixiar a verdadeira espiritualidade. Merton era um místico e como tal falava uma linguagem que está acima das limitações temporais. Profundamente lúcido tinha a convicção que a maioria dos homens não vive. Movimenta-se apenas. Choca-se ao sabor dos acontecimentos. Nas “Reflexões de um espectador culpado” afirma:

“A sociedade massificada se compõe em realidade de indivíduos que, se entregues a si mesmos, sabem que são zero, e que ajuntados uns aos outros numa multidão de zeros, têm a impressão de adquirir realidade e poder.”

                             A triste realidade é que poucos sentem o Absoluto, Deus, ou o nome que queiram dar. A existência humana transformou-se numa simples rotina na qual os acontecimentos nos impelem a pensar e agir mecanicamente. O diálogo transformou-se em zumbido de máquinas cada qual girando no seu eixo (o “eu”, engrenado a outras máquinas visando a quê? Agitação. Futilidade. Mediocridade. Imbecilização em massa. Docilidade para que poucos tirem proveito de muitos. Thomas Merton era um crítico mordaz da civilização de desperdício que cultuamos como um moderno Deus. Assim pensava sobre os padrões de vida norte-americanos. A sua atração pelo Zen foi imediata, pois o Zen valoriza a natureza, a humildade, a espontaneidade, a volta a uma aitenticidade perdida. A poesia foi fortemente influenciada por essa Escola no Japão. E Merton era um poeta. O Haikai, poema sintético com 17 sílabas, dá em leves toques o âmago da experiência do autor. É uma jóia de síntese. Merton, o autênco, o homem que procurou em toda sua vida ser aquilo que era em essência, em inúmeros trechos de sua enorme bagagem literária revela o mesmo estilo direto de descrição da realidade. Vejam como banais acontecimentos são transfigurados por um tratamento Zen:

“Aurora escura.
Debaixo de algumas nuvens altas,
lastros de vermelho matizado.
Um desenho de roupas estendidas,
de grampos para suspender roupas no varal, de vultos nebulosos.
Abstração. Não há como captá-lo.
Deixe ficar.”


                             Ou esta outra que é um verdadeiro haikai em sua estrutura psicológica:

“Tarde tranqüila.
Colinas azuladas.
Lírios balançam ao vento.
Este dia jamais voltará.”


                             O padre Luís, como Merton era chamado pelos trapistas, possuía a visão Zen da realidade que nos cerca. Suas fotografias, seus desenhos, são uma comprovação do mesmo ângulo estético que caracterizam a pintura chinesa e japonesa influenciadas pelo Zen. A valorização do vazio, das coisas insignificantes ao homem apressado que não olha os musgos, os velhos muros descascados, os galhos secos, os objetos marcados pelo uso. A solidão de uma floresta. A plenitude do deserto. Participação. É preciso a todos os momentos cultivar o silêncio como planta tenra, para que possamos encontrar a solidão no meio do mundo. Cada objeto, cada ser, cada instante é um mistério pleno de significação. Debaixo da superfície das coisas está a base última onde elas se encontram. Cada uma delas é um caminho aberto para o encontro com aquele que as sustém em sua grandeza infinita. O encontro é um ato de silêncio. Pois não há participação sem silêncio. Silêncio da fonte que brota no deserto. Do lótus que desabrocha. Da lágrima que escorre. Tudo se resume, então, segundo o Zen, na busca desse silêncio no meio de um Universo de ruídos. A atitude deve ser a da observação pura dos que se sentam e contemplam sem procurar se envolver com os acontecimentos. O Zazen, que é o sentar de acordo com certas regras, é em suma o Zen. Sem ele não é possível atingir o que não se atinge quando vivemos mecanicamente. O simples ato de sentar, que muitos vêem como uma força de meditação budista, é de imenso valor para homens que nunca conseguiram parar no meio dos acontecimentos e são envolvidos por eles, O sentar é a parada em pleno movimento. A inação na ação. A leveza do gesto, o reflexo automático de um lutador de judô, ou de um mestre de espada. A flexibilidade do bambu, a agilidade de um gato. O toque ligeiro de um pintor numa tela de seda deixando o registro de sua passagem para toda a eternidade. É, em suma, plena atenção. Viver o aqui e o agora em plenitude.
                             O mesmo ocorre conosco. É necessário despertar para a grandeza que somos. ACORDAR! MAS COMO É DIFÍCIL. A existência humana transforma-se numa simples rotina de fatos que nos impelem a pensar, agir mecanicamente. Em todas épocas, os textos de uma tradição verdadeiramente religiosa, que está acima da pura religião maquinal da maioria dos homens-máquinas, chama a atenção da necessidade do homem despertar para a Realidade. No Katha Upanishad está dito:

“Este é o caminho. Esta é a mente suprema.
Ele está oculto em todas as pessoas.
Por essa razão, não brilha!
Mas é visto pelos grandes videntes.
LEVANTA-TE! DESPERTA!
A senda é estreita como um fio de navalha.”


                             O absoluto está oculto em todos. Se está oculto é porque inconscientemente não permitimos que ele surja. O homem fechado, o egoísta enrolado em torno de um “eu” ilusório é como um casulo que ainda não sonha que poderá ser borboleta. E como casulo geralmente morrerá, perdendo a oportunidade da transfiguração.
                             A regra dos monges de São Bento é totalmente autêntica quando no prólogo chama atenção para que:

“(...) abramos os olhos à luz deífica e, de ouvidos atentos, escutemos a exortação que todos os dias, em altos brados, nos dirige a voz divina por estas palavras: se hoje ouvirdes a sua voz, não queiras endurecer vossos corações. E ainda: Quem tiver ouvidos para ouvir, escute o que o Espírito diz às Igrejas. E que lhes diz? Vinde, filhos, e ouvi-me. Ensinar-vos-ei o temor do Senhor. Correi enquanto tendes o lume da vida, não vos atalhem às trevas da morte.”

                             A luz existe. Ela não tem culpa se os homens continuam de olhos fechados. A abertura dos mesmos depende do esforço de cada um. Façam um exemplo real. Fechem os olhos. Sintam a escuridão. Imaginem o que será o mundo de um cego de nascença que nunca tenha sentido a diversidade das formas e cores. Abram os olhos e vejam como se estivessem vendo pela primeira vez. O mesmo poderá ser feito com todos os outros sentidos. Todos eles são portas de comunicação com o Absoluto. Depende somente do uso que deles fazemos, mecânico ou desperto, para que tenhamos a consciência da luz deífica da exortação que em “Altos brados” a voz divina nos apela. Sintam a importância do Aqui-e-Agora, do instante mágico onde o tempo e espaço se fundem numa presença sensível na advertência: “correis enquanto tendes o lume da vida...”. A maioria dos homens infelizmente passam pela vida como mortos.
                             O Zen-budismo procura despertar o homem o mais rápido possível, usando para isso métodos pouco convencionais, pois nada é mais urgente, mais vital, do que esse despertar. É difícil dizer o que seja antes do acontecimento. Tão difícil como transmitir em palavras a experiência da água fresca escorrendo numa garganta sequiosa.
                             É a mesma razão que levou Merton em “A Vida Silenciosa” a exclamar:

“A realidade significada pelo conceito é um mistério. Pois concretamente, na terra ninguém sabe com precisão o que seja “buscar a Deus” enquanto não tenha se colocado em marcha para acha-Lo”.

                             Só aqueles que sentiram essa Realidade (não importa o nome) podem falar dela por experiência direta. Os outros são apenas seguidores, copiadores, repetidores em bilionésima mão do que não sentem.
                             O zen busca a verdade por trás das formas, a luz por trás das sombras. Não é uma religião fechada como Merton bem sente. É sim a Verdadeira Religião que está presente em todos os caminhos que levam o homem ao encontro consigo mesmo. Essa religião é o retorno simbólico do filho pródigo ao lar paterno de onde nunca se afastou. É a consciência da inexistência de qualquer problema na configuração de acontecimentos que nos envolvem. É o peru preso no círculo de giz ganhando a consciência da dimensão da liberdade. É a consciência da inexistência dos muros que antes nos isolavam e que desapareceram por completo. Tudo se resuma no desaparecimento do problema. Analisemos a palavra “problema”. É um conjunto de sons que expressa um estado psicológico descrito em outros idiomas por sons diversos. O som não nos interessa, mas aquilo que representa. Vivemos obcecados por essa palavra. Analisando-a friamente veremos como ela existe no nosso cotidiano. Essa verdadeira fixação na existência de problemas, a consideração de que tudo em si é um problema priva o homem de sua liberdade inata de Ser. Um problema é uma configuração de acontecimentos instantâneos. A cada instante a configuração muda, pois novos eventos são incluídos ou sobrepassados. Entretanto, a grande maioria das pessoas não vê as configurações dentro de um contexto mais amplo no qual estão harmoniosamente inseridas. Por exemplo, quando observamos uma coisa do ponto de vista das partículas subatômicas que as compõem, ela se esvanece. Some-se como fumaça. O aspecto concreto da realidade transmuta-se a resta somente uma “mancha”, verdadeira nuvem de acontecimentos em mutação constante. As “leis” que se aplicam são o princípios da indeterminação de Heinsenberg, a física de Einstein, as m atemáticas não-euclidianas. Há uma total modificação do “cotidiano”. O mesmo ocorre, os “problemas” são outros, quando a coisa é observada do nível molcular. À medida que mudamos de escala de observação criamos novos problemas e novas leis. Sente-se que o “problema” cessa de existir quando é visto numa configuração acima da anterior, então aparece unido numa estrutura maior e cessa de existir.
                             Compreendendo isso, o Zen trata os problemas de uma forma direta. A própria palavra Buda é um problema para muita gente que se rotula Budista. Da mesma forma a palavra Cristo para os Cristãos. Ou a palavra Deus para os deístas. Deixem de lado o rótulo que nos separa, que não diz nada, e mergulhem na raiz que nos une. Certa vez, um discípulo ardoroso perguntou a seu mestre sobre o Buda e recebeu como resposta:


“Limpa primeiramente a tua boca desta palavra!”

                             É preciso que limpemos a boca e a mente de puros conceitos, sons sem significação para que possamos encontrar aquilo que não se encontra nas palavras. Aquilo que tem levado os homens a se debaterem uns contra os outros em discussões sem sentido. Thomas Merton possuía raro senso de humor, que é uma característica Zen. Assim descrevia ele o choque entre o intelectualismo e verbalismo:

“Pontífices! Pontífices! Somos todos pontífices fazendo arengas uns para os outros, agitando nossos báculos uns para os outros, dogmatizando e ameaçando com anátemas!”

                             O Zen é muitas vezes rude na sem-cerimônia com que trata as coisas “sagradas”. Um monge cansado de meditar em silêncio, a fim de alcançar o Buda, procura o instrutor Ummon desesperado com seu fracasso. A resposta é seca: “Ele está no estrume”. É a única forma para acabar com as arengas. Para muitos, falar desta forma “desrespeitosa” de um homem perfeito que alcançou a suprema iluminação, de uma flor da raça humana, pode parecer uma profanação. São, entretanto, recursos usados para despertar o homem. Para produzir a visão do que está além da forma verbal. Enquanto o homem não se libertar dessas “prisões”, jamais poderá encontrar o que não se encontra quando se procura. A própria idéia da meta, do alvo, já é um impedimento ao encontro. A “procura” é um ato de plena humildade, de abertura, de libertação de tensões acumuladas no consciente e no inconsciente. Os conceitos mais tradicionais têm de ser revistos sob uma luz da compreensão profunda. Pecado, virtude, moral, castidade, bem, mal são muitas vezes gaiolas que escravizam o homem.
                             Mestre Taisen Deshimaru escreveu um livro chamado Vrai Zen. É um instrutor que vai direto ao ponto. Conta ele a seguinte história a respeito do “problema” da castidade:

                             “No tempo de Buda, viviam dois monges, modelos de todas as regras. Dois exemplos de virtude. Cabeças imaculadamente raspadas, mantos sempre bem cuidados. Cumpriam todas as duzentas e tantas normas prescritas pela disciplina. Certo dia, quando um deles procurava a cidade para esmolar, vê-se diante de uma bela monja e não resiste à atração. O desejo reprimido o inflama. A tranqüilidade da floresta, o calor do dia, o perfume das flores falavam mais alto do que todas as regras. E o monge cedeu. Pela força, submete a jovem. O outro, que vinha logo atrás, a tudo presencia, oculto pela folhagem, e sente-se tomado pela mesma paixão. E procede exatamente como o primeiro. Depois afastam-se juntos, contritos, olhando o chão, como manda a regra, mas sentindo-se arrasados pela ação cometida. A jovem desesperada procura a morte no rio. Os monges torturados pelo remorso vão à presença do virtuoso Upali, encarregado pela Disciplina da Ordem monástica. Fazem a plena confissão dos crimes e são expulsos da comunidade. Seguem então pelos caminhos da floresta cada vez mais mergulhados em seus problemas, até que diante deles surge Vimalakirti, o discípulo iluminado de Buda. É todo compaixão e sabedoria. Uma verdadeira estrela irradiando serenidade por todos por todos os quadrantes. Ouve a trágica notícia e aconselha-os: “A vossa falta é a de ainda pensar no fato passado. Não o façam reviver pensando nele. Concentrai-vos no Presente e renascei a cada instante! Continuai no caminho que escolhestes. Concentrai vossos esforços para que possais atingir a Verdade. Os monges seguiram o conselho e dentro em pouco tornaram-se seres perfeitos. Se nada tivesse ocorrido, se os “acontecimentos” momentaneamente formados não os tivessem levado à ação cometida, continuariam sem dúvida presos às idéias das regras, da virtude, e permaneceriam adormecidos no conceito da virtude. Na palavra. Pois virtude é muitas vezes apenas um conforto para não agir. O crime, o pecado fizeram com que atingissem pela dor à Sabedoria. As cadeias de ouro ou de ferro são, em última análise, apenas cadeias."

                             Thomas Merton, o autêntico, tinha a plena consciência da relatividade dos padrões de julgamento. Sentia, como ninguém, as aves de rapina que estão no título de seu livro, e como vivemos nos alimentando da sua putrefação, adorando a morte quando a vida eterna é nosso Ser. Ocultando sob palavras de Cristo, Buda, Tão, e tantas outras, o mistério vivo. Desesperava-se com o pieguismo. É autêntico quando explode na sua revolta contra o formalismo:

“Em certos momentos, vemos um raio do Zen no meio da Igreja! Deveria, na realidade, haver muito mais. Mas nós o frustramos, raciocinando demasiadamente sobre tudo que há.”

                             Na sua vocação monástica, viu no monge um homem desperto ao mundo, mas ao mesmo tempo preservando o fogo vivo da vida interior. Sentiu o perigo de uma Igreja voltada apenas para aspectos sociais, políticos, econômicos. Constituído de monges homens comuns, cotidianos, impelidos como a massa anônima da humanidade-manada. Também não admitia o homem que se osolasse numa torre de marfim, quando à sua volta o sofrimento e o ranger de dentes cada vez mais se avolumavam. Vai além, ao anunciar:

“Temos de ter a humildade para, em primeiro lugar, tomar consciência de nós mesmos como parte da natureza. Negá-la resulta apenas em loucura e crueldade. Pode-se, sem dúvida alguma, ser parte da natureza sem ser o amante de Lady Chatterley”.

                             Como é imensamente difícil ser natural novamente! Redescobrir a Verdade, a autenticidade que existe no centro do Ser. Atingir o puro despojamento, a pobreza, a humildade, que nos permitem a humanização. É um desaparecimento, um vazio-pleno. Uma vivência.
                             Um fato extraordinariamente significativo são as últimas palavras proferidas por Thomas Merton numa conferência feita no encontro de religiosos de Bangkok. Terminada a enunciação do tema “Monaquismo e Marxismo” despediu-se dizendo:

“And now I will disappear.”(*E agora desaparecerei).

                             O resto é conhecido. Calor. Num quarto um homem liga um ventilador... Choque? Colapso? Um corpo cai. Acontecimentos. Sangue. Gotas. Gotas. Gotas... Uma gota torna-se o Oceano.


(Texto publicado pela primeira vez em janeiro de 2007 no blog "templo dos iluminados")



Introdução do Livro “Zen e as Aves de Rapina”:


                             Onde jaz uma carcaça, aves de rapina voam em círculo e descem. A vida e a morte são duas coisas. Os vivos atacam os mortos, em proveito próprio. Os mortos nada perdem com isso. Ganham até, desaparecendo. Ou parecem ganhar, se é que devemos pensar em termos de perda e ganho. Será que abordamos o estudo do Zen com idéia de que existe algo a ganhar com isso? Essa pergunta não pretende ser acusação implícita. É, no entanto, uma pergunta séria. Onde se faz um espetáculo em torno de “espiritualidade”, “iluminação”, ou simplesmente de “ligar”, isso muitas vezes acontece porque abutres estão esvoaçando em redor de um cadáver. Esse voltear, esse vôo em círculo, esse descer, essa celebração de uma vitória não é o que significa o estudo do Zen (embora possa ser um exercício altamente útil noutros contextos e enriquece as aves de rapina).
                             O Zen a ninguém enriquece. Não há ninguém para ser encontrado. As aves podem vir e esvoaçar em círculo por algum tempo no lugar onde se pensa estar o Zen. Mas, bem depressa, deslocam-se para outras paragens. Quando já se foram, o “nada”, o “ninguém” que ali estava de repente aparece. Isto é o Zen. Ali estava o tempo todo, mas os abutres não o viram, pois não era seu tipo de presa.



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