sábado, 19 de setembro de 2009

Silêncio e a Virgindade em nossas vidas


                              Tudo que é definitivo nasce e amadurece no seio do silêncio: a vida, a morte, a graça, o pecado. O palpitante sempre está latente. Silêncio é o nome de Deus. penetra tudo, cria, conserva e sustém tudo, e ninguém percebe. Se não tivéssemos sua Palavra e as evidências de seu amor experimentadas todos os dias, diríamos que Deus é enigma. Mas não é extamente assim. Deus "é" silêncio, desde sempre e para sempre. Opera silenciosamente nas profundidades das almas. Nos desígnios inexplicáveis de sua iniciativa, livre e libertadora, nascem as operações da graça. Por que dá a uns e não a outros? Por que agora e não antes? Por que neste grau, e não em outro? Tudo fica em silêncio. A gratuidade, por definição, não tem razões nem explicações. É silêncio. É por isso que nosso Deus é desconcertante: porque é gratuidade. Tudo parte dele: a graça, a glória, o mérito e o salário. Nada se merece, tudo se recebe. Ele nos amou primeiro. Ninguém Lhe pode perguntar por Suas decisões. Nenhum ser humano pode levantar-se diante Dele, reclamando, exigindo ou questionando. Tudo é graça. Por isso seus caminhos são desconcertantes, e muitas vezes nos deixam na confusão.



                              Às vezes temos a impressão de que o Pai nos abandona. Mas, ao dobrar a esquina, envolve-nos repentinamente com uma visita embriagadora. Embora Seus caminhos normais sejam os mecanismos ordinários da graça, o Pai nos surprende de repente com gratuidades inesperadas. Deus é assim. É preciso aceitá-Lo tal como Ele é. Não há lógica "humana" em Seu agir. Seus pensamentos e critérios são diferentes dos nossos. O mais difícil é ter paciência com esse nosso Deus. O mais difícil, em nossa ascensão para Ele, é aceitar em paz essa gratuidade essencial do Senhor, sofrer com paciência suas demoras, aceitar em silêncio as realidades promovidas ou permitidas por Ele. Deus é assim: gratuidade. Sua graça atua em silêncio. Penetra silenciosamente nas entranhas complexíssimas da natureza humana. Ninguém sabe como acontece. Ninguém sabe se os códigos genéticos, as combinações bioquímicas ou os traumas da infância ou anteriores obstruem ou destroem a liberdade, terra onde lança suas raízes a árvores da graça.

                             O pecado? É o mistério supremo do silêncio. Quem pode pesá-lo? A fidelidade é um duelo entre a graça e a liberdade; quem pode medi-la? Em que grau pressiona a graça e em que grau resiste à liberdade? Tudo fica em silêncio, sem resposta. Na conduta humana, quanto há de simples inclinação genética, herdada dos progenitores? Quanto de condicionamento determinado pelas "feridas" da infância? E quanto é fruto de um esforço livre? Tudo fica em silêncio, sem resposta.

                             Olhemos ao redor de nós mesmos. Condenamos a este porque teve uma explosão violenta, ou porque um fato de sua vida escandalizou a opinião pública. Todo mundo presenciou a explosão e o escândalo, e todos se sentiram com direito de julgá-lo e condená-lo. Mas quem presenciou anteriormente suas vitórias espirituais? Quem sabe das dezenas de superações que teve, no silêncio de sua alma, antes daquele "pecado"? Todos nós somos testemunha irrefutáveis de toda a generosidade e constância que tivemos, de todas as derrotas antes de podermos sentir um pouco de melhora na humanidade, paciência, maturidade: espaço... E quanto esforço, até que os outros pudessem sentir que melhorávamos. Por que uns triunfam e outros não? Por que este, com uma inteligência tão brilhante, foi sempre um desajustado na vida? Por que esse medíocre se destaca acima dos outros? Quem diria que esse menino, nascido em um fim de mundo, iria deixar marca tão profunda na História? Quem diria que essa personagem ou movimento político acabaria nesse colapso? Está tudo coberto por um véu. Tudo é silêncio.



                              Tudo que é definitivo tem a marca do silêncio. Quantos contemporâneos não perceberam um fulgor sequer da Presença do Deus eterno, que morava naquele obscuro nazeretano chamado Jesus? Com que olhos o comtemplaram Felipe, Natanael ou André? Q que pensaram dele Nicodemos ou Caifás? A travessia do Filho de Deus, sobre as profundas águas humanas, foi feita em completo silêncio. O contemplador emudece diante disso. Um meteoro cruza o firmamento silenciosamente, mas, ao menos, brilha. Deus, quando passou pela experiência humana, nem sequer brilhou, foi eclipse e silêncio. O que mais admira em Jesus e em sua Mãe é a humildade silenciosa. Quantos terão percerbido aquela vizinha de Nazaré que carregava água e lenha, que nunca se metia nos assuntos das outras, mas as ajudava em suas necessidades? Quantos terão sabido que aquela vizinha era "cheia de graça", privilegiada do Senhor, e excelsa acima de todas as mulheres da Terra? Que pensavam dela seus parentes de Caná ou seus familiares mais próximos? Todo o mistério de Maria esteve enterrado nas dobras do silêncio durante a maior parte do silêncio. Muitos de seus privilégios (imaculada conceição, asssunção) estiveram em silêncio até na Igreja durante muitos séculos. Voltamos à mesma conclusão: o que é definitivo está em silêncio.

                              Escolhi esta palavra - silêncio - para o título deste livro e deste capítulo, porque me parece que essa palavra resume e expressa cabalmente a história e a personalidade de Maria. Há na Bíblia expressões carregadas de conotações vitais, e não encontramos, nas línguas modernas, vocábulos que possam absorver e retransmitir todas essa carga. Por exemplo, "shalom". Nossa palavra "paz" não esgota de maneira alguma a carga vital da expressão hebraica. "Anau" significa muito mais do que nossa palavra "pobre". A fé, de que São Paulo fala tanto, tem notas harmônicas muito mais amplas do que essa mesma palavra em nossos lábios. Analogamente, quando digo "silêncio", aplicado ao caso de Maria, quisera evocar um complexo prisma de ressonâncias. Quando digo "silêncio" no caso de Maria estou pensando em sua "disponibilidade" e "receptividade". Quando digo "silêncio" de Maria, quero significar expressões como "profundidade", "plenitude", "fecundidade". Quisera evocar também, conceitos como "fortaleza", "domínio de si", "maturidade humana". E, de maneira muito especial, os vocábulos "fidelidade" e "humanidade", que consideraria quase sinônimos de silêncio.

(...)


                             Na Bíblia, um silêncio impressionante envolve a vida de Maria. Nos evangelhos, a Mãe aparece incidentalmente, e desaparece lodo depois. (...) Fora dessas fugidias aparições, a Bíliba não fala mais nada de Maria. O resto é silêncio. Só Deus é importante, Maria transparece e fica em silêncio. A Mãe foi como esses vidros grandes, limpos e transparentes. Estamos em uma sala, sentados em uma poltrona, contemplando várias cenas e lindas paisagens: as pessoas caminham pela rua, vêem-se árvores, panoramas belíssimos, estrelas na noite. Entusiasmamo-nos com tanta beleza. Mas a quem devemos tudo isso? Quem tem consciência da presença e da função do vidro? Se em vez de vidro houvesse uma parede, veríamos essas maravilhas? Esse vidro é tão humilde que transparece um panorama magnífico e fica em silêncio. Maria foi exatamente isso. Foi uma mulher tão pobre e tão límpida (como o vidro), tão desinteressada e tão humilde, que nos apresentou e nos transpareceu o mistério total de Deus e sua salvação, mas ficou ela mesma em silêncio, e ninguém se deu conta de sua presença na Bíblia. Navegando no mar do anonimato, perdida na noite do silêncio, sempre ao pé do sacrifício e da esperança, a figura da Mãe não é uma personalidade acabada, com contornos próprios. Esse é o destino de Maria. Melhor, Maria não tem destino, como também não tem figura definida. Adorna-se sempre à reação com Alguém. Fica sempre para trás. A Mãe foi um "silêncio cativante", como diz Von Le Fort. Maria foi a Mãe que se perdeu silenciosamente no Filho. Nós a chamamos "virgem".



                             A virgindade é silêncio e solidão em si mesma. Embora a virgindade também se refira aos aspectos biológicos e afetivos, o mistério da virgindade encerra contornos muito mais amplos. Em primeiro lugar, a virgindade é, filosófica e psicológicamente, silêncio. O coração de um virgem é essencialmente um coração solitário. As emoções humanas de ordem afetivo-sexual que, por si, são clamorosas, ficam em completo silêncio em um coração virgem; tudo permanece em calma, paz, como uma chama apagada. Nem reprimida, nem suprimida, mas controlada. A virgindade tem as raízes mergulhadas no mistério da pobreza. É possível que a virgindade seja o aspecto mais radical da pobreza. Não entendo essa contradição que existe em nossos tempos pós-conciliares nos meios eclesiásticos: a tendência a exaltar a pobreza e a tendência a subestimar a virgindade. Será que não estão entendendo mal uma e outra? Será que certos eclesiásticos querem navegar na onda da moda, exaltando "o pobre" na linha marxista, e rechaçando "o virgem" na linha freudiana? Mas o mistério profundo, tanto da pobreza como da virgindade, desenvolve-se em latitude tão distante de Marx e de Freud... no mistério de Deus. Solidão, silêncio, pobreza, virgindade - conceitos tão condicionados e entrecruzados - não são nem têm, em si mesmos, valor algum, são vazios e carentes de valor. Só um conteúdo lhes dá sentido e valor: Deus.

                             Virgindade significa "pleno consentimento" ao pleno domínio de Deus, à plena e exclusiva Presença do Senhor. O próprio Deus é mistério final e explicação total da virgindade. É evidente que a constituição psicológica do homem e da mulher exigem mútua complementaridade. Quando o Deus vivo e verdadeiro ocupa, "viva" e "completamente", um coração virgem, nesse caso deixam de existir necessidades complementares, porque o coração está ocupado e "realizado" completamente. Mas, quando Deus, de fato, não ocupa completamente um coração consagrado, então nasce imediantamente a necessidade de "complementaridade" (...) Só Deus é capaz de despertar harmonias imortais no coração solitário e silencioso de um virgem. Dessa maneira, Deus, sempre prodigioso, origina o mistério da "liberdade". O coração de um verdadeiro virgem é, essencialmente, liberdade. Um coração consagrado a Deus em virgindade - e habitado de verdade por sua Presença - nunca vai permitir, não "pode" permitir, que seu coração fique dependente de alguém. Esse coração virgem pode e deve amar profundamente, mas permanece sempre senhor de si mesmo. E isso porque seu amor é fundamentalmente um amor oblativo e difusivo. O afeto meramene humano pode esconder diferentes e camufladas doses de egoísmo, tende a ser exclusivo e possessivo. É difícil, quase impossível, amar a todos quando se ama uma só pessoa. O amor virginal tende a ser oblativo e universal. Só a partir da plataforma de Deus podemos desdobrar as grandes energias, oferecidas ao Senhor, para com todos os irmãos. Se um virgem não abre suas capacidades afetivas a serviço de todos, estamos diante de uma vivência frustrada e, conseqüentemente, falsa da virgindade.



                             É por isso que virgindade é liberdade. Um coração virgem não pode permitir que pessoa alguma domine ou absorva esse coração, mesmo quando amar e for amado profundamente. Deus é liberdade nele. É possível que o sinal inequívoco da virgindade esteja nisto: não cria dependências nem fica dependente de ninguém. Aquele que é livre - virgem - sempre liberta, amando e sendo amado. É Deus quem realiza esse equilíbrio. Assim foi Jesus. Se Deus é o mistério e a explicação da virgindade, poderíamos concluir que, quanto mais virgindade, mais plenitude de Deus, e mais capacidade de amar. (...) A virgindade, além de liberdade, é plenitude. (...) Quando há uma verdadeira vida com Deus, a fase da imersão em sua intimidade corresponde e sucede a fase de doação entre os homens. Quanto mais intenso tiver sido o encontro com o Pai, mais extensa será a abertura entre os homens. Um trato com Deus que não leve a uma comunhão com os homens é uma simples evasão em que, sutilmente, a pessoa busca a si mesma. Tem que haver um perétuo questionamento entre a vida com Deus e a vida com os homens, que devem combinar uma com a outra integradamente, condicionando-se mutuamente, sem dicotomias.



(Texto retirado do livro "O Silêncio de Maria", de Inácio Larrañaga)



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