domingo, 8 de novembro de 2009

Você vai MORRER! - Parte I


                             Alguns místicos acreditam que as religiões que ensinam que o homem é uma criatura de Deus, feita do barro, não sabem o que dizem, não estão falando nenhuma verdade, e que seu ensinamento é muito pobre, muito superficial.

                             Bom, se o ensinamento é superficial, isso depende... depende da forma como se percebe e se compreende um ensinamento religioso. Não há como afirmar que ele é superficial ou profundo, a não ser para nós mesmos, pois esse mesmo tipo de explicação pode ser totalmente suficiente para uma outra pessoa, pode ser tão profundo e místico como nenhum outro o é... Por essa perspectiva, a gente aprende que não é muito certo julgar doutrinas religiosas, mas que é mais justo buscar compreendê-las. Elas existem por um motivo (que não é só o de simplesmente dar uma explicação momentânea à ânsia humana de se autoconhecer, podendo ir muito além...).


                             O ensinamento de que o “homem é feito de barro” pode significar simplesmente um amor mais cuidadoso por parte do Pai com relação ao seu filho ser humano. Um amor que não tem limites. Na Obra da Criação é dito que todas as coisas surgem quando Deus pronuncia sua palavra. "E Deus disse (...) E assim foi feito". No entanto, Deus preferiu usar as próprias "mãos" para criar o ser humano, modelando-o carinhosamente, fazendo cada traço com todo o carinho e satisfação. Depois de pronto o molde, Deus pensou em habitar essa morada, entrando em núpcias com o ser humano. Nessa relação sagrada, a Divindade sopra seu próprio Espírito nas narinas do homem, fazendo o homem ter Vida, Sua própria Vida, Seu próprio Espírito. Deus deu de Si mesmo ao homem, para o formar. Esse romance todo foi desejado por Deus em seu mistério de Amor relacional. Ele anseia, mais do que simplesmente criar, obter uma relação com um filho que lhe seja em tudo semelhante, em tudo igual a Si (respeitadas todas as diferenças, claro! Ele é o Pai, nós somos seus filhos... e nisso está a relação).

                             Diz-se, portanto, que no princípio Deus criou as coisas visíveis e invisíveis (Bereshit bara elohim vet hashamaim vet aretz), de modo que todas as coisas foram feitas na Unidade. Não havia separação entre Espírito e matéria, porquanto eram Uma só substância. E todas essas coisas foram feitas a partir de Sua Palavra poderosa. No entanto, ao Criar o ser humano Uno, preferiu fazer isso com suas próprias mãos. Preparou-lhe um espírito livre e independente, depois modelou-lhe as formas, e logo depois insuflou-lhe o Espírito da Vida. Preparou-lhe um espírito independente, ou uma alma pensante (criação de Deus-Pai), modelou-lhe a forma (criação de Deus-Filho), insuflou-lhe o Espírito da Vida (criação de Deus Espírito Santo). O homem é completo em suas três dimensões: corpo, alma individual e espírito.


                             Esse ensinamento revela que tudo é criação de Deus, desde a mais ínfima matéria visível, efêmera e mutável, passando pela mais complexa mente, alma pensante e individual, livre e independente que cada um temos, até o mais eterno, sutil, essencial e verdadeiro espírito (que compartilhamos com todos, pois o Espírito da Vida é Um Só). E tudo foi criado em unidade.

                             No entanto, para todas as coisas criadas por meio da Palavra, a criação não envolveu uma relação amorosa, mas tão somente um ato externo de amor. Mas para o ser humano a criação foi uma relação de Amor, não simplesmente um ato externo de seu Criador... mas um casamento perfeito. Núpcias eternas de plena felicidade. Deus se envolveu com o ser humano a ponto de se revestir de nossa matéria (e isso fica ainda mais evidente ao contemplarmos o mistério da encarnação divina). Nessa perspectiva da relação essencial de amor, a criatura de barro revela-se, na verdade, um autêntico filho de Deus, diferenciando-se de todas as outras criaturas simplesmente por gozar de uma especial intimidade com o Altíssimo.


                             Além disso, o ensinamento do barro traz uma outra importantíssima lição a ser aprendida pelo ser humano, além daquela que revela que o homem é filho amado e dileto por Deus e criado na unidade com Ele, por Ele e para Ele: o ensinamento de que as coisas visíveis passam, e as invisíveis permanecem, o ensinamento de que a matéria corruptível foi feita para nos ensinar a humildade de espírito, para que não busquemos nos destruir a nós mesmos por meio de nossos poderosos espíritos. Um espírito poderoso como o nosso se autodestruiria facilmente se não aprendesse a ser humilde, a reconhecer que Deus é tudo em Nós. E é por isso que fazemos essa experiência pela matéria. Para que essa experiência "kenótica" esvazie nossos egos, dando-nos um choque ao perceber que toda a matéria é efêmera, ilusória e passageira. Devemos perceber que “o homem é pó, e ao pó retornará", "que não devemos juntar tesouros na Terra, onde a traça corrói e os ladrões roubam... mas no céu, onde não há tempo, não há corrupção", que um único espírito humano tem muito mais valor do que achamos que ele tem, e por isso vale mais do que todos os reinos dos mundos visíveis (Mateus 3, 8-10; Isaías 43, 4). Esse choque era necessário para quebrar o ego humano, fazendo o homem se desapegar das coisas materiais e até mesmo se despojar de si mesmo. Deparar ao mesmo tempo com sua eterna grandeza e sua total fragilidade e pequenez. Perceber as coisas efêmeras é dar um choque em nós mesmos para que pensemos: "o que é o homem sobre a terra? Qual nossa real identidade, nossa real necessidade? O que venho cultivando é o que deve ser cultivado? Tenho me iludido, vivendo intensamente na matéria e esquecendo meu espírito?”

                             Nada tem duração nessa matéria, tudo é vaidade e vento que passa. Não devo cultivar ilusões efêmeras, ainda que todas sejam criações divinas... elas estão aqui para me ensinar a minha própria pequenez, a fragilidade do meu ego, a me ensinar a superação e a humildade. Eles estão aqui para me ajudar, para me servir... para que eu possa servir a mim mesmo e a meus semelhantes, cultivar o que deve de fato ser cultivado: meu Amor, meu eterno Amor, que é a única essência eterna “que não me será tirada.” A matéria cumpre uma finalidade importantíssima na Criação, de modo algum podendo ser rebaixada, mas claro, dando a ela apenas o valor que lhe cabe. Qual ser humano nunca levou um choque ao deparar com o mistério da morte (ainda que ele já tenha percebido que é apenas um fenômeno material)? Que ser humano não entendeu que a morte é um fenômeno material se não tivesse levado um choque ao perceber a fragilidade humana, sofrer com as perdas e finalmente sublimar pensando “isso não pode ser o fim”?


                             “Eis que sois pó, e ao pó retornarás” encerra uma verdade sublime, verdadeira e mística, sim (ainda que de forma reflexa)... um ensinamento que coloca o ser humano de frente com seu próprio ego, para que ele perceba o quão frágil é esse ego, e para que tão logo seja possível, abandone sua mania de grandeza, seu egocentrismo. Esse tipo de ensinamento vem nos mostrar que Deus é Criador das coisas visíveis e invisíveis, e tudo isso é Bom, pois concorre para nossa evolução, para nossa percepção da verdadeira relação que devemos ter com o Pai e com os irmãos.

                             Um ensinamento que ao mesmo tempo nos revela que somos filhos de Deus amados por Ele mais do que tudo, feitos por suas próprias mãos, insuflados por sua própria essência, e que nos choca ao nos deparar com a fragilidade da matéria, que nos faz rever conceitos para abandonar o ego, a mania do poder, o apego ao visível, a evitar a autodestruição.... Esse ensinamento não pode ser superficial. Na verdade, é tão místico e profundo quanto todo o mistério que provém de Deus.

                             Devemos ressaltar que todo esse ensinamento é uma metáfora bíblica preparada para passar um ensinamento espiritual e místico, preparado para fazer o ser humano compreender o incompreensível, contemplar o incontemplável. Um código místico cheio de significado. Isso não quer dizer que Deus realmente nos fez de barro, e que colocou suas mãos sobre nós. Nem que não sejamos de fato feitos de barro (pois sabemos que nosso corpo é matéria orgânica). Também não podemos pressupor que Deus tenha mãos, ou pés... No entanto, quando o ensinamento passa pelo mistério da encarnação, a metáfora se faz realidade... E ai daquele que nega que o Cristo tenha vindo em carne “pois o espírito que assim prega não provém de Deus”. Ai daquele que nega que o Cristo tenha morrido. E ai daquele que não acredita em sua ressurreição. Se você despreza a encarnação, nega a humildade divina e todo o seu amor relacional cultivado a nós desde o princípio. Se você nega a sua morte, nega que veio do pó, e ao pó retornará, ou seja, nega sua fragilidade, nega sua pequenez, sua efemeridade, e, consequentemente, torna-se poderoso, soberbo, vaidoso, inconseqüente, egóico e insensível (a morte não te choca). E se você nega sua ressurreição, nega seu próprio espírito, nega sua Vida Eterna, afirma que a morte é um ponto final definitivo (a morte te choca além do que deveria. A morte te deprime).

                             O ensinamento bíblico nos choca e nos coloca nas trilhas da Consciência sensível: “o homem veio do pó, e ao pó retornará” significa “EI!!! Por que age como um Deus? VOCÊ VAI MORRER!!”

                             O ensinamento bíblico nos choca e nos coloca nas trilhas da Consciência essencial: “No mundo haveis de ter aflição. Coragem! Eu venci o mundo” significa “sua Vida é Eterna. Além deste mundo, há um outro além, no qual a paz se faz verdade. Após a morte, tu ressuscitarás”.

                             É muito comum confundir eternidade com imortalidade. Tendemos a misturar os ensinamentos. Quando pensamos que a morte é definitiva, achamos que não há vida após a morte, que tudo acaba, e que isso nos tira a liberdade e a alegria de viver. E quando descobrimos que somos eternos, achamos que somos imortais, e isso nos tira a sensibilidade humana, nos torna egóicos e soberbos. O ensinamento Cristão, no entanto, é profundo e não nos deixa cair nas armadilhas da falácia mental. Ele nos ensina que apesar de eternos, não somos imortais. A consciência de que vamos morrer, e que a morte é definitiva (portanto única), deve andar junta com a consciência de que a Vida é Eterna e não acaba com a morte.

VOCÊ NÃO É IMORTAL. VOCÊ VAI MORRER!!!
ACALME-SE. VOCÊ É ETERNO.

                             A pergunta é: como você vai passar a sua eternidade? A consciência da morte decorrente do choque existencial (você vai morrer) é quem nos responde. Nas palavras da poeta: “a gente leva da vida a vida que a gente leva”. Mas isso ficará para o próximo post.

(Texto de autoria própria)

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