domingo, 6 de julho de 2008

Dividir para Unir - Parte II

                             Iniciaremos os nossos estudos sobre a espiritualidade lembrando que se trata mesmo de um "estudo", ou seja, possui caráter intelectual e, muitas vezes, até científico. A intenção, como já dito antes, é a de analisar o fenômeno espiritual sob uma ótica lógica e metafísica, e não religiosa e mística. O misticismo e a espiritualidade estão no âmago de cada um, e cabe a cada um sentir e viver sua própria espiritualidade. O propósito desta série é apenas o de auxiliar a pessoa que muitas vezes perde a sua espiritualidade por falta de razão, falta de compreensão, perdendo-se num fundamentalismo crônico ou num ceticismo radical, o que não deixa de ser também um tipo de fundamentalismo.
                             Para tanto, utilizaremos a análise e a inteligência racionais, o que chamo de "ignorância-burra", pelo fato de esta não ser capaz de progredir mística e espiritualmente (como um cão correndo atrás do próprio rabo) e também pelo fato de gerar muita vaidade e orgulho vãos. Mesmo assim, utilizaremos tal instrumento, mas como um meio de ascensão, e não como um fim sem si mesmo. Dessa forma, a atividade lógica ganha um fim nobre, objetivando usar a tal "ignorância-burra" para poder estudar, analisar, dividir, esmiuçar, mas reunificar e reedificar a pureza do coração. Todo e qualquer estudo só nos será válido se, ao final, servir ao propósito derradeiro da reunificação e da mística espiritualista. O conhecimento adquirido e mantido no plano das idéias não passa de inteligência latente. Nunca chega a ser sabedoria. Nunca passa a ser parte da vida da pessoa. Nunca a reunifica com sua essência. Nunca reestabelece a sua "ignorância-pura".



O Todo


                              O que é o Todo? Para iniciarmos nosso estudo, precisamos "compreender" o que é o Todo. O Todo é tudo aquilo que se pode pensar, tudo aquilo que não se pode pensar e é tudo aquilo que está muito além daquilo que podemos ou não pensar. É o conjunto que compreende todas as coisas: coisas que são, coisas que não são, coisas que já foram, coisas que virão a ser, coisas que deixarão de ser, coisas que existem, coisas que não existem, coisas que já existiram, coisas que virão a existir e coisas que deixarão de existir. O Grande Todo é o Infinito em si mesmo, compreendendo todo o universo e tudo o que há fora do universo. No entanto, não há nada que exista fora do Todo ou que não esteja inserido no Todo, pois o Todo é o próprio tudo e o próprio nada. É o conjunto supremo formado por todas as coisas, as quais, porém, não lhe formam a própria essência, pois o Todo não se confunde com os elementos de todas as coisas, não devendo sua essência ou existência a nada além de si próprio, ao passo que todos os outros elementos e coisas devem sua existência ao Todo.
                             Ao tentarmos compreender o Todo, deparamo-nos com um paradoxo divino, algo que vai muito além de nossa vã filosofia e limitada razão: o Todo encerra tudo em si mesmo, e não há nada fora do Todo, de modo que o Todo permanece em infinidade e plenitude. Nada lhe é retirado, e nada lhe é acrescentado. Nada existe fora do Todo que não esteja inserido dentro do Todo, pois o Todo é o próprio Todo, e se houvesse algo fora dEle, de certo que esse algo seria maior do que Ele mesmo, tornando-se o próprio Todo. Nesse caso, o nosso Todo deixaria de ser o Todo e seria uma "Parte", o que nos levaria a um novo mistério de causas infinitas e princípios sem saídas (ou de saídas infinitas, como o próprio Todo o é em si mesmo). No entanto, a tese de que o Todo continuaria dentro de outro Todo, e assim sucessivamente em direção à eternidade, parece ser um absurdo, pois não há causa ou conseqüência fora, ou mesmo dentro, do próprio Todo que O justifique. Ele é sua própria causa e conseqüência, sua própria fonte de essência e existência. O Todo é e sempre foi o Todo, e assim Ele permanece. Poderíamos até conviver com a ambigüidade desses mistérios principiológicos citados, mas não poderíamos dizer que enfim compreendemos tais mistérios, pois passaríamos a pensar da seguinte forma: "ou o Todo é a causa da causa de outro Todo, e assim infinitamente, sempre existindo um Todo maior fora do próprio Todo (do qual o Todo é "Parte" e "Todo" de si próprio ao mesmo tempo), ou o Todo é o único Todo, sendo Ele próprio causa e fim de si mesmo, permanecendo em infinidade e plenitude eternas, o que para nós dá na mesma. É um mistério que continua mistério!
                              O mistério divino arrepia-nos, ainda mais, ao contemplarmos que não pode haver nada que reduza ou acrescente substância ao Todo (ou seja, não há nada dentro do Todo que não seja Ele próprio) e também não pode haver nada fora do Todo além de si próprio. Os próprios conceitos de "dentro" e "fora" são totalmente escassos e vazios quando levamos em consideração, como parâmetro de comparação, o atributo da Eternidade e da Infinitude. O que é o espaço e o tempo em comparação com o Infinito e o Eterno?
                              Vimos que tudo o que existe ou não existe só pode estar compreendido pelo Todo, portanto chegamos a um outro mistério inefável: como que as demais coisas do universo existem no Todo se o Todo não se compartilha, não se confunde? Como pode existir algo além do próprio Todo, se não há nada fora ou dentro do Todo que não seja Ele próprio? Se o Todo não emprega material nenhum fora de si mesmo (até mesmo por não haver nada que exista fora do Todo) para criar e chamar à existência todas as coisas, e também não se diminui a si mesmo para criar e chamar à existência todas as coisas, como é que o Todo cria? Cria a partir de algo de dentro ou de algo de fora? Cria do nada? Mas o algo (de dentro ou de fora) e o nada não são pertencentes ao Todo? E se são pertencentes ao Todo, como aplicá-los sem reduzir ou acrescentar substância ao Todo? Só podemos chegar a uma conclusão: Se o Todo não cria de algo de dentro, nem de fora, nem do nada, então cria de si mesmo. Mas cair-se-ia no mesmo mistério, pois como criar algo de si próprio sem reduzir-se ou acrescentar-se?



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("feche os olhos e contemple o mistério")

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                              A voz dos sábios e a pureza dos iluminados nos ensinam que todas as coisas que existem ou não existem procedem do Todo, compartilhando com Ele a essência e a natureza, pois não há outra essência ou natureza diversa do Todo, posto que o Todo é o Tudo e o Nada em si mesmo. O Todo é o único. Todas as coisas são feitas da mesma substância essencial que É a própria substância do Todo em si mesmo, mas tal fato não lhe tira ou acrescenta substância, pois o Todo permanece em plenitude e infinidade. Por tal paradoxo lógico, parecemos existir, mas não existimos, ou existimos, mas não parecemos existir. Por tal paradoxo, parecemos ter essência, mas não temos, ou temos essência, mas parecemos não tê-la. É um mistério! Como podemos competir com o Todo? Ou existimos nós, ou o Todo existe. Ou Somos nós, ou o Todo É. No entanto, nem um, nem outro. Tanto um quanto outro. Existimos nEle, e Ele em Nós. Mas tal mistério é algo que não possui explicação. O Todo é simplesmente a Onipresença Eterna. Eis, pois, o grande paradoxo divino, o grande mistério espiritual: o segredo da Onipresença divina. E o desconhecimento da resposta de tal segredo nos demonstra o fato de que, em verdade, apenas o Todo É, e apenas o Todo sabe todas as coisas (e, por óbvio, demonstra-nos também o fato de que não somos o próprio Todo, pois, se fôssemos, nada nos seria secreto. Não somos o Todo, embora existamos em decorrência dEle, e nEle tenhamos nossas essências e existências).





                              Os sábios, santos e iluminados nos dão o testemunho da fé e da reverência ao mistério ao nos legar o princípio fundamental da espiritualidade: "O Todo é incognoscível". Por esse princípio, só nos cabe aceitar e sentir o princípio espiritual como verdade de fé, não passível de compreensão lógica e racional, pois toda a nossa lógica e raciocínio são limitados, e o que é limitado não pode compreender aquilo que é Ilimitado em si mesmo. O Todo é para nós algo incompreensível, e nisso reside o mistério e o paradoxo divinos.

(Continua...)

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