segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O Seqüestro da Subjetividade e o Desafio de ser Pessoa - Parte II


Pe. Fábio de Melo

O Mundo e seus cativeiros

                             A vida humana é sempre uma experiência mundana. Vivemos no mundo. Mundo é tudo aquilo que está em ordem. É tudo aquilo que deixou a condição de caos. Interessante esse conceito. Também nós estamos constantemente ordenando a realidade em que estamos situados. Cada vez que realizamos um gesto que organiza, que coloca na ordem e que harmoniza, de alguma forma estamos recriando o mundo, isto é, estamos desfazendo o caos.

                             Mas o mundo é também um lugar de movimentos contrários. Ao mesmo tempo em que há o movimento que encaminha a realidade para a ordem, há também o movimento que retira a vida da ordem e cria o caos. É o mundo em sua negação. Interessante, mas, dentre os inúmeros significados da palavra mundo, há um que a coloca como adjetivo que diz respeito àquilo que está asseado, limpo, polido e puro. Pois bem, a palavra “imundo” indica a negação do mundo, uma vez que na língua portuguesa ela significa “aquilo que está sujo, impuro”.

                             Portanto, o imundo pertence à categoria de tudo o que está fora da ordem, desarmonizado, caótico. Realidades imundas precisam ser reordenadas para que voltem à ordem original. É assim que consertamos a vida; é assim que atualizamos o gesto criador de Deus no espaço em que estamos.

                             Toda vez que esbarramos nos cativeiros do mundo, de alguma forma, encontramos a negação da vida humana. Cativeiro é o local imundo, da desordem, do roubo e da desumanização. Cada vez que um cativeiro é estabelecido, em sua materialidade ou não, alguém está perdendo a capacidade de recriar o mundo por meio de sua própria vida.

                             O Tratado de Teologia Cristã da Criação nos assegura que o gesto criador de Deus tem sempre continuidade na vida humana. Cada vez que eu me realizo verdadeiramente como pessoa, vivendo e aperfeiçoando as capacidades que me foram entregues, tais como minha liberdade, capacidade de amar, de alguma forma o Criador continua criando o mundo a partir de mim.

                             É por isso que podemos dizer que o ser humano é dotado de capacidade recriadora. A inserção da vida humana no espaço criado teve o intuito de que nos tornássemos sujeitos da criação. Como já vimos anteriormente, ao sujeito cabe a função de realizar a ação do verbo. Neste mundo de tantos verbos, os sujeitos movimentam e transformam o mundo.

                             Podemos alçar um vôo ainda maior. De acordo com a Teologia Cristã, o Verbo de Deus se torna sujeito em cada criatura humana, potencializando-a a ser como Ele e com Ele. Essa incorporação da vida divina na vida dos humanos é um desdobramento do mistério da Encarnação. Pelo mistério de Deus encarnado, a criatura humana legitima no tempo por meio de sua ação, a Graça, isto é, o amor de Deus sempre presente e atuante no mundo. Graça que salva, santifica, humaniza, transforma, gera o mundo ao desfazer o imundo.

                             A Antropologia Teológica Cristã nos propõe que o mistério da Encarnação tem continuidade histórica por meio do movimento humanizador que a graça de Deus realiza. Graça que no sujeito é particular, podendo ser acolhida, ou não, pelo exercício da liberdade.

                             A ação da Graça de Deus na vida humana trabalha num primeiro momento no fortalecimento de sua identidade. Somos filhos no Filho. Somos incorporados pela força sacramental que está manifestada no dom de Deus na tarefa humana.

                             Veja bem, a intervenção divina não está para “tornar angélico o humano”, mas, ao contrário, está para conceder-lhe nova condição humana, restaurada e reconciliada em Jesus, o verbo de Deus.

                             Esta compreensão antropológica cristã é riquíssima, pois nos sugere a santidade como aperfeiçoamento do que é humano, e não como sua negação.
Em cada sujeito é colocada a presença do Verbo, o movimento que a tudo comanda. A Graça de Deus é conferida a cada sujeito de maneira única e particular. O sujeito e sua subjetividade. Cada um move o mundo ao seu modo, de acordo com os atributos e limites que lhes são próprios. A Graça esbarra nesses limites, pois nem todos estão em busca de uma forma de viver que seja favorável ao florescimento de sua subjetividade, ao fortalecimento de sua identidade.

                             O impulso da Graça na vida humana tem o poder de fortalecer essa identidade. Vida de santidade é vida de identidade assumida, fortalecida, aprimorada. É vida que se esmera por tomar posse da herança a que se tem direito. Santificar é o mesmo que humanizar. É receber-se de novo; é voltar ao molde inicial, onde o Verbo nos gera e nos faz ser o que somos. Não viver a santidade é o mesmo que abdicar da condição de realeza. É como se um rei resolvesse ser escravo. Deixa o trono, vai viver a condição desumana que a escravidão confere. Esquece que é rei, abdica do trono. Deixa o mundo e assume o imundo como casa.

                             A vida cristã é quase uma afronta aos inteligentes. Deus confere realeza aos mais fracos deste mundo. Os miseráveis foram revestidos de um manto de glória. Os fracassados foram olhados nos olhos; receberam o convite. Os títulos reais estão à disposição. Basta querer.

                             No mundo do caos, a situação é outra. O projeto é desumanizar. É retirar a dignidade, a realeza; é causar o esquecimento da condição que nos assegura sermos prediletos de Deus, gente de valor.

                             O imundo é o lugar dos desumanizados. É fácil viver esse projeto, não requer muito esforço. A santidade, o aprimoramento, requer coragem. A desumanização requer fraqueza. É mais fácil ser fraco. É mais fácil justificar-nos na preguiça existencial que nos aquieta nas expressões próprias de quem já perdeu a batalha. “Sou assim mesmo e não quero mudar!”

                             Ao contrário, existir com qualidade é desafio de toda hora. Requer esforço constante para manter a autenticidade, mesmo quando tudo parece nos encaminhar para o processo natural de superficialidade e do falseamento. O mundo do caos é feito de superficialidades. Não é preciso pensar para nele sobreviver. Muito pouco é necessário. É só entrar no movimento das transitoriedades e dos condicionamentos.

                             As estruturas sociais em que estamos situados são fortemente marcadas pela transitoriedade. Sobreviver em meio ao caos deste mundo que passa é um desafio constante.

                             Sendo tudo tão passageiro, tão artificial e representativo, torna-se muito difícil a experiência de manter a identidade, de manter o pacto com a Graça. É na tentativa de acertar e de sobreviver que muita gente se perde. As estruturas imundas estão por toda parte. Elas são capazes de provocar o esquecimento da identidade, porque neutralizam o poder da Graça de Deus na vida humana.
Existir de qualquer jeito não requer esforço. Basta entrar no movimento das estruturas que tornam a vida humana cada vez mais artificial. Basta dizer sim à manifestação brutal dos desumanizados deste mundo. Basta se render àqueles que legitimam as forças das realidades caóticas do nosso tempo.

                             No espaço dos desumanizados, a subjetividade não tem valor. Não há preocupação para se preservar a sacralidade da pessoa e seu horizonte de sentido. Todo o esforço direciona-se à manutenção de uma estrutura de poder que cada vez mais fragiliza a vida humana.

                             Meios de comunicação, estrutura política, econômica e até mesmo religiosa parecem socializar uma proposta de espaço humano que definitivamente não está a favor do fortalecimento da identidade, mas, ao contrário, parece legitimar o interesse em retirar o ser humano e seu prumo, deixando-o à deriva, num imenso mar em fúria.

                             Fragilizado, o ser humano fica vulnerável, e facilmente é roubado de si mesmo. Acrítico, passa a sorver a existência sem muito pensar sobre ela. Entra no doce movimento do mundo que o entretém em vez de desafiá-lo. Entretido, o ser humano vai fazendo a entrega de si mesmo em pequenas partes. Permite que os invasores se alojem nas imediações de seus territórios e, aos poucos, bem aos poucos, vai permitindo a invasão.

                             Esta reflexão pode ser belamente amparada nos versos de Eduardo Alves da Costa, quando nos diz:

“Na primeira noite, eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.”



                             A invasão é lenta. E o pior, é ato permitido. O nosso medo autoriza o invasor. O não dizer é uma omissão terrível, é uma forma de autorizar o golpe. O outro nos banaliza aos poucos, avança em nossos territórios; toma posse do que amamos, pisa o nosso jardim, mata os nossos filhos; e porque nunca dissemos nada, agora mesmo é que já não podemos dizer.

                             Eles entram pela porta da frente, e até mesmo o mais frágil de todos é capaz de roubar-nos a luz. Fora da luz de nossa identidade, isto é, esquecidos de nós mesmos, somos presas frágeis diante do medo. Ao medo cabe o poder de paralisar os que não sabem do que são capazes. Esta ocupação do nosso território não é feita com alarde.

                             No mundo das representações, os seqüestradores não estão encarapuçados, tampouco nos surpreendem em vielas escuras. Eles andam às claras, e nem sabem que estão a serviço dos desumanizados. Também eles foram vítimas de seqüestro. Também eles não sabem que estão nos cativeiros do mundo moderno, transitando entre as condições de seqüestrado e seqüestrador.

                             O elemento-chave para que esta incapacidade de percepção prevaleça é justamente a artificialização do mundo. Não sendo afeito à reflexão, o sujeito não se torna capaz de analisar as relações que estabelece. Vive sem pensar, vive sem refletir; vive para machucar e ser machucado.

                             Transita pelos territórios minados da estrutura dos desumanizados e sofre a triste condição de ser solitário e errante. Por não ser dono de si, dificilmente poderá se oferecer a alguém de verdade. Viverá trancado em seu pequeno cativeiro, incapacitado de reconhecer que precisa de ajuda para sair. Ele, em sua miséria, abriga o mundo inteiro. Engrossa a fila dos necessitados deste mundo, perde a oportunidade de fazer valer sua existência, e passa a desempenhar um papel muito pouco digno de ser aplaudido por quem o vê atuar. O mundo nele não se recria, mas ao contrário, acelera ainda mais o seu processo de destruição. Nele o caos ganha força, representação.

                             Uma coisa é certa: onde houver um ser humano em processo de destruição, nele todo o universo vive a dor de morrer aos poucos. O contrário também é verdade. Onde estiver um ser humano se renovando pela força da Graça recriadora, nele todo o universo estará sendo recriado.

                             Na condição de ser primeira morada do mundo, cada ser humano traz em si o dom de transformar o mundo inteiro, mas isso só será possível se ele viver o constante desafio de não se perder de si mesmo.

                             Quando o seqüestro da subjetividade se estabelece na vida de uma pessoa, o que acontece é justamente a perda de identidade. Fragilizada, perde o poder de lutar e de defender-se dos ataques que lhes são altamente nocivos. Seu mundo é transformado em imundo. (*O que era harmonia se transforma em desarmonia). O que era ordem transforma-se em caos. É o caos dos afetos, dos pensamentos, das diretrizes. É o caos lançando suas raízes tão destruidoras e profundas, neutralizando as iniciativas que poderiam gerar alguma forma de superação. É o mundo deixando de ser mundo.


(continua...)





*(Texto de autoria do Pe. Fábio de Melo. Retirado do livro "Quem me roubou de mim? O seqüestro da subjetividade e o desafio de ser pessoa").

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